domingo, 11 de março de 2012

Poesia e Drama. Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro. António José Saraiva. «Em primeiro lugar, quem era Bernardim Ribeiro? As hipóteses não têm faltado, com suas respostas solícitas e apressadas. A mais antiga é a do velho fabulista-mor Faria e Sousa. Segundo ele, Bernardim, natural da vila do Torrão, jurista de profissão e fidalgo de nascimento, ter-se-ia apaixonado pela infanta D. Beatriz»

viciodapoesia

«Abeirarmo-nos singelamente da obra de Bernardim Ribeiro para escutar, em recolhimento, as melodias da sua flauta pastoril não é tarefa muito simples, porque temos de remover as montanhas de hipóteses, de eruditos comentários e de sábias polémicas sob as quais jaz sepultado o mais límpido dos bucolistas portugueses. Ele não sonhou com certeza que os fados o destinassem para regalo dos eruditos:
  • ‘mas tudo é assim; fazem-se umas cousas para outras para que se não faziam...’
E, se, depois deste esforço enorme de remover escombros, nós perguntarmos:
  • ‘Quem era, afinal, Bernardim Ribeiro?,
  • ‘Que escreveu, afinal, Bernardim Ribeiro?
Verificamos que não adiantámos um passo, que estamos no ponto de partida. E, todavia, sem darmos uma resposta, pelo menos provisória, a estas perguntas, é-nos impossível passar adiante, porque elas delimitam o próprio objecto do nosso estudo, o campo a explorar.
Em primeiro lugar, quem era Bernardim Ribeiro? As hipóteses não têm faltado, com suas respostas solícitas e apressadas. A mais antiga é a do velho fabulista-mor Faria e Sousa. Segundo ele, Bernardim Ribeiro, natural da vila do Torrão, jurista de profissão e fidalgo de nascimento, ter-se-ia apaixonado pela infanta D. Beatriz, por via da qual se meteu nas brenhas da serra de Sintra carpindo saudades, até que se aventurou ao caminho da Itália, onde ela se casara e de onde ele veio, desiludido, acabar seus dias em Portugal. Como garantia da veracidade deste lindo conto de amor deixou-nos Faria e Sousa a sua palavra...

Cortesia de ribatejo

Passado o entusiasmo romântico por esta hipótese, na qual também colaborou o sisudo Herculano, reparou Teófilo Braga em que, segundo uma data que ele deduzira das “Éclogas”, Bernardim era quase quarenta anos mais velho do que a Infanta e em que, além disso, não havia maneira de reduzir o nome de Beatriz ao anagrama de Aónia, heroína da novela onde, segundo o já citado Faria e Sousa, se conta a triste história amorosa do Poeta. Portanto, nova hipótese:
  • Aónia era D. Joana de Vilhena, prima de el-rei D. Manuel, e Bernardim Ribeiro o apaixonadode Aónia.
O principal argumento em que esta hipótese se baseia é a coincidência do nome com o anagrama; e, levadas as coisas por este caminho, o brasileiro Varnhagen entendeu que uma outra Joana, a ‘Louca’, mãe de Carlos V, não tinha menos direito que a outra a ser a amada de Bernardim Ribeiro: e assim se levantou a terceira hipótese.
Um belo dia, enfim, todas estas hipóteses se desvaneceram à claridade da crítica histórica, que surgia com os documentos desentranhados dos arquivos. Trazia-os o visconde de Sanches de Baena e constavam de duas peças principais:
  • uma genealogia dos Zagalos, parentes dos Ribeiros, onde se encontra uma referência à triste história dos amores de Bernardim Ribeiro com sua prima Joana Zagalo, e um documento judicial de 1642 em que se fala de certo “doutor Bernardim Ribeiro”, bisavô de um dos litigantes, e que, por um feliz acaso, continha tudo quanto os investigadores procuravam. Data do nascimento, data da morte, história da infância em Sintra e da velhice ‘numa cela do Hospital de Todos os Santos, onde acabou’ desamparado da ‘luz do entendimento, já fraco desde muito’.
Aplicada esta chave à novela e às éclogas, tudo se volveu subitamente claro, e os leitores penetraram nas intimidades da vida do Poeta: neste trabalho se empenhou de alma e coração o entusiástico Teófilo Braga. A própria D. Carolina Michaëlis, hesitando, a aceitou como definitiva.

Cortesia de  excaliburtita

Mas, esclarecedora e definitiva como aparecia, esta mesma hipótese não logrou vencer a teimosia de certos renitentes. Logo apareceu quem pusesse em dúvida a autenticidade do famoso documento judicial. Depois, alguém notou que Bernardim Ribeiro, nem no “Cancioneiro Geral”, nem em qualquer das edições das suas obras saídas no século XVI, é tratado por doutor, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o seu amigo Sá de Miranda (no “Cancioneiro” o ‘doutor Francisco de Sá’, nas “Obras” o ‘doutor Francisco Sá de Miranda’ e com António Ferreira (‘o doutor António Ferreira dos “Poemas Lusitanos”, pelo que se torna muito improvável que o doutor Bernardim Ribeiro do documento judicial - que também consta de outro documento como escrivão da puridade de D. João III, e o Bernardim Ribeiro poeta sejam a mesma pessoa. Enfim, António Salgado Júnior, num interessantíssimo estudo, analisa a famosa genealogia de Flamínio e chega à conclusão de que essa genealogia, que não foi publicada em parte nenhuma, está alicerçada nos documentos que o próprio Baena descobriu ou forjou.
E eis desfeita a quarta hipótese. Mas a hipótese número cinco não esperou pelo desaparecimento desta para se fazer anunciar. Sabendo-se que a primeira edição das obras de Bernardim Ribeiro sai da tipografia de um judeu português fugido à perseguição e que essa edição é, a par da “Consolaçam às Tribulaçoens de Israel”, o único livro português impresso em casa de tal judeu, só uma razão poderia explicar facto tão insólito e tão estranho:
  • Bernardim Ribeiro era judeu também e o seu livro, proibido de circular em Portugal, continha referências às perseguições da Inquisição (maldita). E Bernardim seria, neste caso, o judeu ‘Juda Abarbanel’ ou ‘Abarbinel’, o indigitado Leão Hebreu, autor dos famosos “Diálogos de Amor”.
Esta hipótese tem o mérito, pelo menos, de se apresentar como tal; mas exige, para tomar consistência, certo número de razões substanciais e positivas, tanto mais que se lhe opõem pelo menos os seguintes factos:
  • as relações com o cristão-velho e severo Francisco Sá de Miranda, demasiado positivas para se poderem negar;
  • a frequência da Corte e dos famosos momos e serões de Portugal, onde se reunia a mais legítima fidalguia portuguesa;
  • as sextinas trocadas entre Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e D. Leonor de Mascarenhas, senhora conhecida pela sua mística e cristianíssima religiosidade;
  • a “Cantiga à Senhora Maria Quaresma”, que, se não revela um respeito religioso pelo rito cristão, revela pelo menos a sua aceitação e a sua prática;
  • enfim, as ideias heréticas frequentes na sua obra e que o eram também em relação ao judaísmo».
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT