segunda-feira, 26 de março de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «Recordo-me de descer, trôpego, as escadas íngremes da casa e quase cair, em baixo, no lajeado da rua, sob a arcaria ainda suportada por gastas colunas arrancadas de um há muito destruído templo dos romanos, ou de qualquer edifício da velha cidade de Ulisses, e caminhar até ao cais»


Muralhas de Lisboa
jdact e purl

O Ciclo do Dragão
«No cais, as naus balançavam-se e os gemidos do madeiramento do cordame misturavam-se com os gritos das tripulações, as ordens da soldadesca, os urros dos prisioneiros, as preces, o choro convulsivo das crianças que partiam e os soluços incontrolados das mães. Desde o areal branco-sujo do cais e percorrendo, como a nota dissonante de um cântico maldito, o circuito das muralhas, o clamor de agonia subia até à ‘porta da passagem' uma das trinta e oito portas da cidade, aberta nas grandes muralhas que Reis construíram ao longo das vicissitudes da nossa história, e continuava por aí acima, ao longo do rio, pelas ruelas da judiaria e da mouraria, abraçando o convento de S. Vicente, atingindo o dos frades Agostinhos, esbatia-se no monte forrado de mato rasteiro, oliveiras e vinhas da Graça e assomava já esmorecido, mas insistente e triste, aos imensos panos da muralha da Alcáçova. Eu olhava, interdito, sob o sol, o telhado verde dos torreões franceses do paço de S. Martinho, o casario branco que o envolvia em baixo, na colina.

Recordo-me de pensar como tudo parecia belo, perfeito, apesar da dor das mulheres e dos homens no cais, do mau cheiro das ruelas apinhadas, onde se recolhia, de tempos a tempos, o lixo e os detritos dos homens e dos animais que o Rei acusava de serem os responsáveis pelos sucessivos surtos de peste, apesar do crime, da ganância, da estúpida credulidade dessa gente simples que pulula na grande cidade, nesta jóia ímpar do Atlântico, rica e arejada, que os estrangeiros invejam e cantam, onde se estabelecem os ruivos e enormes homens da Flandres, os louros teutões do Báltico, os possantes navegadores da Noruega e da Inglaterra e de mais longe ainda, como aqueles vigorosos comerciantes da misteriosa Finlândia, que pescam o salmão de prata e o trazem salgado até aos nossos portos, à sorrelfa quantas vezes, arrostando os rigores da justiça e que, durante a noite, à luz das candeias de azeite ou sob as tochas e os brandões espetados nas areias de Belém, cantam, tocando aquele estranho instrumento, ‘o kantele’, as aventuras dos seus heróis, como o grande e enigmático Wainamoinen, cujas glórias chegaram às profundidades do mar, ao palácio do deus Ahto, que o escuta sempre enleado. E dizem os marinheiros que o velho deus, que se veste de escamas vermelhas e azuis, acompanhado pela deusa sua mulher que entoa um cântico, líquido como as ondas esmeralda do país dos antigos hiperbóreos, vem até à praia escutar o herói e chora. Que deuses bons esses, Senhor, que choram perante a arte dos seres humanos, das frágeis mulheres mesmo que sejam deusas e dos heróis... Esses velhos marinheiros que me traduziram para um inglês adulterado os magníficos versos da Runa XXII do “Kalevala” já partiram há muito. Como eu parti, o Rei, a Rainha, Antão de Faria que foi devorado pelo propositado esquecimento, Garcia de Resende, João da Paz, Ruth, a minha flor do Sinai e de sol, minha Jerusalém de Ouro para sempre guardada na minha alma, todos, todos... Só que aquele outro canto entoado pelos milhares de infelizes ao longo do cais e das praias, hoje, infelizmente, já acompanhado pelo implacável crepitar das fogueiras, esse, jamais o esquecerei. Por mais que eu repita: 
  • ‘E o meu povo habitará no domicílio da paz, uma morada segura, um lugar tranquilo’

Eu sei que não é verdade. Por meses, por anos, por séculos, até que no espírito dos homens a violência e a tirania sequem, como o velho ramo da figueira amaldiçoada, e cintile depois de muitas lutas que adivinho e todas as agonias que os séculos cimentarem, na linha ténue do seu horizonte, aqui ou em outro lugar qualquer, como uma pequenina estrela que crescerá e abarcará o Universo, a concretização desse sonho que alimentou desde o início dos tempos a alma de alguns homens, a liberdade, a sagrada, a divina liberdade que poderá constituir a criação mais pura que alguma vez frutificará na Terra.

Recordo-me de descer, trôpego, as escadas íngremes da casa e quase cair, em baixo, no lajeado da rua, sob a arcaria ainda suportada por gastas colunas arrancadas de um há muito destruído templo dos romanos, ou de qualquer edifício da velha cidade de Ulisses, e caminhar até ao cais.
Choquei com dois ou três desgraçados, mouros talvez, que percorriam durante o dia sempre o mesmo périplo, com os tabuleiros de pinho sujo e rachado pendurados no pescoço que protegiam com um pedaço de flanela ensebada, e que vendem as porcarias que os negros confeccionam e lhes são entregues pelos marinheiros da Guiné e da costa da Mina ou, ainda, os objectos heterogéneos dos brutais traficantes que chegam do Levante». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT