Finalmente, um pé em terra
«(…) Os primeiros anos da década de 50 foram, portanto, de
regresso. Dada a associação pública e notória dos portugueses com os piratas
japoneses durante os decénios anteriores, e com temor de uma reacção de
Beijing, as autoridades de Guangzhou resistiram ao desembarque dos comerciantes,
fazendo-se as trocas ao largo. Mas, a pouco e pouco, começaram a ocorrer alguns
desembarques em pequenas ilhotas do delta (Shang Chuang e Lang Pai Kao, entre
outras). E, em 1554, há notícia do
primeiro acordo luso-chinês de comércio. Não terá passado à forma escrita, não
terá tido o formalismo que Lisboa procurara em iniciativas anteriores, mas os
próprios historiadores chineses não o põem hoje em causa.
Numa carta de Janeiro de 1556,
enviada de Cochim pelo capitão Leonel Sousa ao príncipe Luís, irmão do rei João
III, diziam-se coisas importantes. O acordo tinha sido firmado, oralmente, com
a autoridade marítima chinesa da zona. Os portugueses não poderiam voltar a
utilizar como nome identificativo folangji, já que estava proscrito pelos
decretos de expulsão de 1522-23. A solução foi apresentarem-se,
a partir dessa altura, como gente malaia ou siamesa. Só em 1564, e por um lapso dos intérpretes chineses, se descobre a sua
verdadeira nacionalidade, de gente de Portugal. Mas é de crer que os mandarins
de Guangzhou sabiam, desde o início, com quem estavam a comerciar de novo.
Depois, os novos malaios ou
siameses deram pagar as taxas alfandegárias, tal como faziam todos os outros
Estados tributários do Sueste Asiático que vinham comerciar a Guangzhou. Comprometemo-nos a pagar uma taxa
alfandegária de vinte por cento, como é costume, tal como os naturais do reino
do Sião, que frequentam estas águas sob licença do imperador da China, diz
Leonel Sousa. Outra condição era a oferta de presentes às autoridades locais,
mas em segredo. Eles querem receber
presentes dissimulados, pois existem punições severas para quem aceitar
subornos, refere Leonel Sousa.
Por fim, era exigido aos portugueses que, de futuro, obedecessem a
todas as normas que regulavam o comércio estrangeiro e respeitassem as
autoridades chinesas. Devido à má reputação no passado, os mandarins pediram de
modo particular a Leonel Sousa que vigiasse e controlasse bem os seus homens. Como
o acordo foi feito sem autorização das autoridades em Beijing, os acontecimentos
por ele narrados não podem, naturalmente, ser confirmados nas fontes chinesas
oficiais da época, mas existem provas privadas coevas que corroboram a história
do capitão português. Como se
processa, três anos depois do acordo de Leonel Sousa, a instalação dos
portugueses em Macau? A visão, romântica, da historiografia portuguesa
foi, durante séculos, a de que o território foi cedido graciosamente pela
China, em agradecimento por os portugueses terem expulsado da zona uma série de
piratas. Não há documentos que o comprovem. O mais provável é que essa
instalação tenha sido acidental, informal e quase despercebida nos primeiros
tempos. E que tenha contado com a cumplicidade das autoridades de Guangzhou,
entretanto subornadas.
Historiadores chineses dizem hoje que os mandarins
de Guangdong terão, através da experiência de comércio e contactos na década de
50, percebido que bastava evitarem que os portugueses colaborassem com a
população chinesa pouco escrupulosa e com os japoneses para deixarem de
constituir uma grande ameaça para a dinastia ou para a nação. Se os estrangeiros
fossem confinados a uma zona onde existissem meios para exercer uma apertada
vigilância sobre os naturais que faziam esse contacto, o comércio poderia ser
lá realizado. Mas a zona deveria, de preferência, ser no continente e suficientemente
perto de Guangzhou, para também satisfazer as necessidades dos portugueses.
Quanto a piratas, e no que respeita à segurança da cidade, Macau passaria a ser
um porto-tampão nas mãos dos militarmente temíveis portugueses, que assim poderiam
afastar as ambições de piratas e rebeldes locais». In
Fernando Correia de Oliveira, 500 anos de Contactos Luso-Chineses, Público,
Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-8179-28-6.
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