Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) Este personagem colectivo, Lisboa, envolve mesteirais,
cidadãos, mercadores, armadores, lavradores, homens de pequena conta ou
quantia, mancebos e assoldadados. Quase um terço dos 193 capítulos da Primeira
Parte da Crónica são dedicados à urbe com quem fala: ó cidade de Lisboa, famosa entre as cidades, forte esteio e coluna
que sustém todo Portugal! Por outro lado, vimos já que certo enquadramento
social da acção constitui uma novidade maior nas crónicas de Fernão Lopes.
Também os factos económicos saltam aqui e ali. E há que referenciar um elemento
de ouro: o quotidiano irrompe como uma pintura e, nesses retábulos de prosa,
irão beber historiadores e artistas das épocas vindouras, mesmo aqueles que o apoucam.
Uma última questão sobre os factos e o seu enquadramento social, particularmente
os que fervem na Primeira Parte da Crónica de D. João I. Fernão Lopes herdou boa parte desses factos. Mas
podia deixá-los cair no escorregamento
dos tempos. Afinal, que cortesão é este que arrasta para o terreno sagrado
da luz e da História, por exemplo, o homem de vila Caspirre, avançando a cortar
(com a espada ou com a foice?)
a cabeça do conde de Viana, filho do
conde velho? Que fazem neste teatro a arraia-miúda dos ventres ao sol ou os cachopos que arrastam os
corpos ungidos do bispo ou da
abadessa?
Fazedores da História dos séculos vindouros deixarão cair esses
eventos, envolverão Fernão Lopes na mortalha da sombra quando não do
esquecimento. A primeira edição, mutilada, da Crónica de D. João I datará
de 1644. Mais nenhuma edição verá a
luz do dia até aos finais do século XIX. E só no século XX, honra a Braancamp
Freire (embora imprimisse apenas três centenas de exemplares), ao inglês
Entwistle, a António Sérgio e outros, o texto da Crónica de D. João I
saltou abertamente para a luz. Por que é que este guarda-mor da Torre do Tombo,
este plebeu vassalo do rei não
deixou cair os eventos da revolução de 1383? Não se trata somente do seu
génio, da sua simpatia pessoal pelos miúdos.
A resposta tem a ver com o período histórico em que o cronista escreve, tem a
ver com o núcleo burguês dirigente da sociedade portuguesa com o qual Fernão
Lopes se identifica. Mesmo assim a balança é tão sensível que é possível
assinalar diferenças. Quando noticia, por exemplo, a traição dos fidalgos da
Beira em 1396, é muito mais
cauteloso e discreto, o que parece inculcar que, quando relata estes
acontecimentos, o clima político em Portugal se adensara.
Mesmo que tenha omitido alguns dos factos herdados, Fernão Lopes tem plena consciência da carga explosiva que
transporta na sua narrativa, sobretudo quando pinta os grandes personagens na
sua nudez humana ou na sua traição. E
porém quem muitas histórias quiser ler, mormente autênticas e aprovadas, achará
que os autores delas louvaram grandes senhores e seus bons costumes. E doutros
escreveram suas feias condições e, desvairados feitos. E este modo teve Santo Agostinho
na Cidade de Deus, cuja obra e autoridade não é de pasmar. E nós, nesta parte
seguindo sua ordenança, forçado é que luxemos algumas pessoas, falando delas em
certos lugares, mormente pois já seus excessos por outros antes que nós são
semeados em tais histórias, cuja nódoa, porém, segundo direito escrito e
evangélica doutrina, não põe mágoa em seu linhagem, quando os descendentes dela
não forem seguidores de suas perversas pegadas.
Este homem que enaltece a simples,
verdade, que antes calaria que dizer cousas falsas, tem contra ele um clamoroso
ataque, precisamente aí, na verdade que seria a menina dos seus olhos e de que
procurou a maior certidom. Os
seus detractores maiores deixaram, no entanto, marcadas as impressões digitais,
quando enalteceram ou omitiram as menos fundamentadas crónicas de Pedro I e de
Fernando I e se ativeram ao romance histórico
da Crónica
de D. João I. Não pretendemos defender a virgindade sem mácula de
Fernão Lopes nem de qualquer outro autor, moderno ou contemporâneo, por mais
escrupuloso que seja na busca da verdade. As crónicas lopeanas não constituem
um evangelho. Mas quanto
melhor se conhecem os documentos da Chancelaria de D. João I e os
documentos da época, existentes noutros cartórios, mais a Crónica maior se
firma de pedra e cal». In António Borges Coelho, A Revolução de
1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.
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