terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil. Soraya Silveira Simões. «… objectivos do processo de profissionalização. O termo profissão pode, por isso, ser interpretado como um símbolo da concepção do trabalho que é reivindicado e, por conseguinte, um símbolo do” eu”»

Cortesia de wikipedia 

Resumo
«Este artigo procura analisar o percurso de mobilização das prostitutas no Rio de Janeiro até o reconhecimento de uma identidade profissional. A formação das associações de prostitutas no Brasil, a partir dos anos 1980, a participação efetiva no movimento de prevenção da AIDS e a interlocução com o Ministério da Saúde na conquista do almejado registro da prostituição na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério de Trabalho, contribuíram para a definição de suas causas e serão aqui restituídos de seus contextos político, social e urbano, de modo a evidenciar o desenvolvimento de um código deontológico de um grupo profissional».
 
... la morale de demain será ce que seront les convictions de demain relativement à l’importance, à la nature et à la signification des rapports sexuels. In Gabriel Tarde, La morale sexuelle, 1902.
 
«A prostituição é uma actividade estigmatizada, proibida em alguns países e em outros tolerada ou regulamentada. Apesar dos problemas que a cercam, é também conhecida como a profissão mais antiga do mundo. Considerá-la deste modo supõe, entre outras coisas, certa virtude no seu exercício e um status positivo para essa ocupação. Pois o conceito de profissão, visto da perspectiva interacionista privilegiada por Everett Hughes (1996), é antes um julgamento de valor e prestígio do que um termo descritivo. Também para Howard Becker, profissão é ainda um folk concept que nada diz sobre as especificidades do trabalho levado a termo por certos profissionais, mas sim sobre seu status. Perguntar-se, então, se um métier é uma profissão obscurece questões mais fundamentais como, por exemplo, em que circunstâncias os membros de um métier tentam transformar o seu ofício em uma profissão? No momento em que a profissionalização se torna um objecto de discussão entre os membros do métier, pode-se observar que esta tendência corresponde à mobilidade colectiva de alguns (ou muitos) deles. Identificar aqueles que não acompanham essa mobilidade passa a ser um dos objectivos do processo de profissionalização. O termo profissão pode, por isso, ser interpretado como um símbolo da concepção do trabalho que é reivindicado e, por conseguinte, um símbolo do eu. Por essa razão, considerar o contexto em que essa mobilidade se produz e se transforma em objecto de discussão torna-se imprescindível. E isto na medida em que uma causa é sustentada não só pelos actores directamente interessados, mas, sobretudo, por aqueles outros, persuadidos de sua pertinência e capazes de conduzi-la e de legitimá-la em outras arenas.
Reivindicar a prostituição como uma profissão obriga a distinção de condutas, posturas, procedimentos, direitos, deveres e certa ética. Mas não só: para a aquisição de certas competências e a assunpção de responsabilidades, torna-se necessário recusar o papel de vítima, frequentemente atribuído às prostitutas independente do contexto em que exercem a actividade. Paralelamente às reivindicações de reconhecimento, empreendidas por prostitutas em diversos países do mundo, as histórias tristes (sad stories) continuam integrando os repertórios de argumentação de muitas dessas mulheres, de modo a justificar, paradigmaticamente, a entrada, noção demarcadora, no métier. Para o desempenho de uma actividade estigmatizada, como a prostituição, o indivíduo munido de uma história triste pode melhor organizar a sua vida, diz Goffman (1975). Mas, em contrapartida, deverá resignar-se a viver em um mundo incompleto onde figura como alguém prestes a ser desacreditado em função dos atributos do estereótipo que encarna. Ao fazer uso da história triste, que relata o momento fundador da possessão do seu estigma, a prostituta se desembaraça, justamente, da responsabilidade de ter efectuado uma escolha. Por serem eminentemente tristes, essas narrativas justificadoras distanciam o sujeito das virtualidades, confiança, respeito e estima, que lhe asseguram o auto-reconhecimento positivo do qual necessita para se sentir uma pessoa normal. E, entre outras coisas, uma profissional.
Mudar o registro da justificação de uma fatalidade para algo que possa ser percebido como uma opção é, portanto, abrir uma perspectiva sobre as responsabilidades assumidas com essa escolha. Um horizonte profissionalizante pode, então, se esboçar. E, entre as responsabilidades exigidas para a oferta de tal serviço, o cuidado do próprio corpo surge como uma das condições primeiras para o desempenho da função de prostituta. Mesmo que a tendência profissionalizante se torne pronunciada, nem sempre ela é capaz de mudar o status do indivíduo estigmatizado. Contudo, esse movimento, na medida em que ganha espaço nas arenas públicas, permite a formação de um novo consenso, possibilitando uma nova auto-representação e, com ela, uma transformação do ego e novas formas de agir». In Soraya Silveira Simões, Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.1, 2010.
 
Cortesia de RAntropologia/JDACT