Ciência e Religião. Natureza
e Símbolo
«(…) Também a reflexão de Paul Ricoeur aponta nesse sentido: ao situar
o esforço da pesquisa no campo da metáfora, considera-a, não como a retórica
clássica, no quadro semântico da palavra, mas sim no quadro semântico do
discurso, o que lhe retira um estatuto meramente ornamental ou emocional. Ela
comporta uma informação nova, origina novos campos semânticos, diz qualquer
coisa de novo. Assim também o símbolo, que tem em comum com a metáfora esse signifier plus, sublinhando
Ricoeur que [...] para aquele que participa
na significação simbólica, não existem dois significados, um literal e outro
simbólico, mas um único movimento que nos transfere de um nível ao outro e que
nos assimila à significação segunda graças, ou através, da signigicação literal
[…]. Nesses termos, conclui Ricoeur, a significação simbólica, ao invés de
se configurar como uma degradação daverdade, apresenta-se como uma capacidade
fundamental de dar forma à experiência
humana, mediante o que considera como uma redescrição da realidade. Ora, esse movimento que nos transfere de
um nível a outro arrasta consigo as marcas profundas do eufemismo. Ele
transfere-nos de um significante concreto e sensível a um significado que não é
passível de percepção. Afigura-se como um sistema de conhecimento indirecto,
onde significado e significante tendem a aproximar-se. Todavia, tal
aproximação, a fim de que a arbitrariedade se não instale, deverá exprimir uma
dimensão ontológica profunda, que se traduz pelo conceito de participação. De facto, o
simbolismo apenas poderá funcionar desde que haja distanciação, embora sem
corte radical, como também, desde que haja plurivocidade, embora sem arbitrariedade.
Apenas assim poderá transmitir a ideia da sua pertinência.
E a ideia de participação
que possibilita uma verdadeira comunicação entre o sensível e o não sensível;
que legitima esse caso limite do conhecimento indirecto; que nos possibilita aceder
à presença do transcendente. De facto, para que o símbolo se não degrade, em alegoria, é necessário que o
significante participe do significado. Assim sucede, de facto, no caso que nos
interessa focar, o do simbolismo das criaturas, em que assenta o significado
religioso do universo, o qual poderia ser classificado como arbitrário se lhe
não assistisse essa dimensão fundamental e profunda de participação. É ela que determina que o significado se tome
presente no significante, que a transcendência do significado se tome, em certo
sentido, presente no significante. O mesmo se dirá, porventura com maior
pertinência, do dogma da Eucaristia, responsável por uma das mais acesas polémicas
do pensamento setecentista: apenas uma presença real toma possível o símbolo;
sem ela estaríamos tão-só em presença de simples imagens, dotadas de poder
emocional, mas incapazes de estabelecer uma verdadeira comunicação. Como escreveu
Roger Mehl, a simples imagem manteria o sentido do mistério, ao passo que o
símbolo faz enconlrar o mistério: … para
que se possa falar de símbolo e para que o símbolo nos faça pensar não sobre o
finito mas sobre o infinito,importa que o infinito se estabeleça no finito, que
vença a incapacidade natural do finito para dizer algo para além de si próprio.
Então, para o cristianismo, apenas poderemos falar em símbolo na medida
em que ele nos é dado por Aquele que aceita ser simbolizado, melhor
dito, que aceita ser integrado no finito sem, contudo, com ele se confundir,
atribuindo ao que é perecível e finito um sentido que este, por si próprio, não
poderia comportar. Fazer coincidir o fenómeno com o infinito, eis a profunda
missão do símbolo no seu originário significado religioso, o qual coincide,
como reconheceu Gadamer, com a missão originária do símbolo em sentido lato: … a forma religiosa do símbolo corresponde
exactamente a finalidade originária do symbolon: ser divisão do uno e
reintegração da dualidade. Por isso, o movimento reintegrador que o símbolo
constitui apenas se toma defìnível relativamente a um horizonte de valores, pela
atracção do qual a nova significação emerge do significante que o transporta: é
esse horizonte que guia, ao fim ao cabo, todo o fecundo esforço de
interpretação, permitindo que o sentido que se quer evocar possa emergir no
prolongamento e sobre o apoio de um sentido já disponível. Em todo o caso, a
representação será sempre indirecta, deixa em suspenso o sentido visado,
percebido in aenigmate: esse sentido é tomado presente mediante a função
simbólica, embora, ao mesmo tempo, permaneça distante. Ele permanece ausente
na sua própria presença». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no
século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.
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