Sátiras contra os Favoritos e Magnates
«(…) O conde Pedro de
Portugal insistia no mesmo ponto: seu
saber é juntar aver. Servir o rei nada vale. Peitas, isso sim! E
se el-rei, por boa inclinação, procura fazer bem, levam-no a mal. Um dos grandes
privados, na corte del-rei Afonso III, era o chanceler Estêvão Anes. Que
miopia a dele! Mas caiu bem no goto
do rei, nota Joan Soárez Coelho, jogando com o duplo significado de cair. Bendita
miopia que o fazia cair! Míope?,
pergunta Roí Queimado. Talvez. Mas ouve bem. Cuidado! E erguem-se agora, contra
o favorito, três cantigas violentas de Airas Pérez Vuitoron, insinuando vícios
homossexuais, desfazendo-lhe na miopia e insistindo na sua crueldade: não há homem
nem mulher que non queirades trager
come can. A melhor destas sátiras baseia-se na miopia: Comi ontem em casa do rei. Nunca os vossos
olhos viram tal pão nem vinho como eu lá bebi! De dez anos para cá, nunca vistes
um capão como aquele, nem melhor cabrito nem tal lombo de vinh’e d’alhos e
de sal. Não, nunca vistes um homem comer como eu comi. Não me faltou nada: non
vistes nen avedes de veer. Chega a ser cruel. Porém Vuitoron era
partidário del-rei Sancho II. Daqui nasce parte do seu ódio ao chanceler Estêvão.
E tem, ou parece ter, o gosto equívoco de insinuações homossexuais. Estêvão da
Guarda era de Aragão. Isso não o impedia de atirar remoques ao seu patrício Miguel
Vivas, chanceler-mor del-rei Afonso IV e bispo eleito de Viseu, a partir de 1330. Ironicamente, jogueta com o verbo
privar: conforme o proveito
que me vier da vossa privança, rogo eu
a Deus que sejades privado.
O favor real fazia
perder a cabeça a muita gente e o monarca tinha de os pôr no seu lugar: Pois Fulano
mais vale sendo pobre e sem poder, então que volte ao que era e torne a
ganhar juízo. Pertence ainda a Estêvão da Guarda esta graça posta na boca do
rei. Voltando, porém, a Miguel Vivas, temos contra ele um serventês a
descrever-nos a fisionomia do bispo, como dum grande beberrão, de penca
vermelha:
Eu convidei un prelado a
jantar, se ben me venha.
Diz el en est’: - E meus
narizes de color de bereguenha?
Vós avede-los alhos
verdes, e matar-m’-íades con eles!
- O jantar está guisado e, por Deus, amigos,
trei-nos.
Diz el en est’: - E meus
narizes color de figos çofeinos?
Vós avedes os alhos
verdes, e matar-m’-íades con eles!
Alhos e não olhos.
Quem matava não eram uns lindos olhos verdes, mas esses alhos que levavam um
homem a comer de mais. E o bispo vai-se preocupando com as cores do nariz: E o meu nariz cor de escarlata roxa?
E o meu nariz cor de rosa bastarda?
E o meu nariz cor de púrpura escura?
E o meu nariz cor de amoras maduras?
No conflito entre Sancho II e o conde de Bolonha, alguns alcaides hesitavam e
vendiam os castelos, sob qualquer pretexto. Assim fez Fuão, que tinha mantimentos e entregou o castelo con mínguas que avia». Não atacam
um homem de tal coragem. À falta de jornais, estes poetas exprimiam a
consciência do povo. Faziam troça dos arranjistas, como faziam troça dos adiantados
novatos ou traidores, encarregados de governar e defender as comarcas
fronteiriças. Os ricos-homens andavam também na boca do mundo trovadoresco. Gil
Pérez Conde troça dum ricome, que
em tudo mudou. Até de valente se tornou cobarde, sem aguentar as lazeiras dos tempos idos, quando nada
lhe metia medo. Noutro lugar, investe contra um magnate que tira e não dá. Nuno
Fernandez Torneol cita um rico-homem mentireiro
a quem falara no caminho de Valhadolid para Toledo. Até à tropa dava ele mentiras
por sa soldada.
Entra certo rico-homem em Segóvia e logo baixa o preço das coisas, de
dez soldos para cinco, resmunga Pero Ponte. Que remédio, pois era o rico-homem
a comprar! Outros eram ignorantes, mandriões, avarentos e ninguém os queria
para nada. Só pensavam em ajuntar, como certo rico-homem que o mesmo Pero Ponte
imagina pôr à venda, sem ninguém lhe pegar. E
porquê? Ricom, que sabedes fazer? E ele
respondia: Coisa nenhuma (ren), a não ser comprar herdades, se alguém mas
vende. E aqui temos nós um protesto contra certos latifundiários, para quem
toda a terra era pouca, por muita que fosse». In Mário Martins, A Sátira na
Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série
Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual
Camões, 1986.
Cortesia de Instituto
Camões/JDACT