A instituição. Casas de Despacho e de Secreto
«(…) O oratório completava este núcleo de dependências. Tinha janela
para a casa do Despacho interior. Os oficiais, sem abandonarem o ofício, podiam
acompanhar a missa diária. No altar estava posto o crucifixo que abria a
procissão dos autos-da-fé.
Cárceres e quotidiano
Deixemos agora estas dependências onde roçagaram humilhados vencidos ou
vencedores, muitos joelhos humanos; onde muitas lágrimas correram; onde
famílias inteiras se destruíram, acusando-se apertadas pela morte. Entremos nos
curros humanos, distribuídos pelo andar térreo e pelo primeiro piso. O alcaide com dois guardas leva o preso para
os cárceres e ali o mete em um, e o deixa sem mais alívio que ver-se fechado
com duas portas, metido em uma casa de quinze palmos de comprido, e doze de
largo, escura e que tem por claridade uma fresta levantada do chão dez palmos
pouco mais ou menos. E terá a fresta de largura uma mão travessa e de
comprimento três palmos. E assim dá tão pouca luz que não chega ao chão. E para
verem os presos alguma cousa hão-de estar em pé porque então lhes dá a luz nos peitos,
postos na parede oposta à luz da fresta. E quando estão assentados nada vêem. E
assim comem às escuras. E todo o dia estão desejando a noite para lhes darem
luz: esta é uma tigelinha de barro vidrado com um bico como candeia e para se
alumiar lhe dão azeite por conta de sua limitada ração […] E dela lhe descontam
roupa lavada, carvão para o comer e mais miudezas da cozinha.
Nestes cárceres acotovelavam-se quatro a cinco pessoas, às vezes mais.
Recebiam um cântaro de água para oito dias e outro para a urina, com um serviço
para as necessidades, que aos oito dias se despejavam. No verão são tantos os
bichos que andam os cárceres cheios e os fedores são excessivos. Maria
Mendes, de Portalegre, com mais de 80 anos, mulher de trapeiro,
morreu nos cárceres a 27 de Julho de 1632, de morte natural
provocada pela velhice, câmaras e piolhos.
Francisco Dias Calado, barbeiro de Beja, reconciliado em conversa
com o padre franciscano frei António de S. Nicolau: - Se eram claros os cárceres do Santo Ofício (maldito),
perguntara o frade. - Que eram muito pequenos e escuros e não podiam andar neles
senão com o corpo dobrado sem ter onde se assentar senão na cama ou no chão. E
se cozinhavam o comer, quebravam os olhos com o fumo. Que ele saíra meio cego
por esse respeito. E se se podia dizer que haverá neste mundo inferno o eram os
ditos cárceres. (A denúncia da conversa foi feita pelo frade a 1 de
Fevereiro de 1627).
Um estrado toma meia casa onde põem as esteiras das camas e os colchões
que apodrecem com a humidade. Se forem cinco os presos, só cabem de costas no
estrado e ombro com ombro; por isso alguns preferem dormir nos ladrilhos fora
do estrado. Quatro palmos de casa cabe
a cada um. Aos mortos são concedidos sete pés de sepultura e nem tantos de casa
cabem a cada um destes desgraçados vivos. Esta é a forma dos cárceres de
Coimbra e Évora. As Inquisições (malditas)
terão cárceres secretos e seguros, bem
fechados e dispostos de maneira que haja neles corredores separados, uns que
sirvam para homens, e outros para mulheres, e se atalhe a comunicação entre os
presos, para maior observância do segredo, pelo grande prejuízo que do contrário
se seguiria para o Santo Ofício (maldito). O
Regimento
de 1613 impõe que nenhuma
mulher moça se porá só no cárcere em casa apartada, e quando parecer
necessário, e pera sua salvação, afastar-se da companhia das outras, parecendo aos
inquisidores que convém assim [...] lhe darão uma mulher de bem, e de confiança
com que esteja em sua companhia, e olhe por ela, e venha com ela quando lhe
fizerem sessão e audiências na Mesa, e torne com ela, de maneira que se
conserve a honestidade de sua pessoa. Beatriz Mendes, de Serpa,
mulher de ourives, 40 anos, a caminho da fogueira no dia 27 de Agosto de
1600 importuna o jesuíta Tristão
Ferreira que a acompanhava: por descargo de sua consciência quisesse pagar de
algum fato que lá lhe ficava no cárcere a uma moça, natural daqui de Évora,
chamada Luísa de Castro, o serviço que por alguns meses lhe fizera
vivendo ambas juntas no mesmo cárcere.
Em 1630 o padre jesuíta
Gaspar de Miranda, residente no Colégio e Universidade de Évora, expressava ao
recém-empossado inquisidor-geral Francisco Castro algumas das queixas que lhe
chegavam dos homens da nação daquele
distrito. Sobre os cárceres escrevia: É cruel aperto estarem alguns
juntos em uma casinha, com todo seu serviço necessário, sem sol, nem luz, nem
ar, com mau cheiro humidade e corrupção de tudo, perigo de peste e doença. E
mais adiante: Por isto saem muitos do cárcere surdos, ou com dores de dentes,
ou tolheidos de alguma parte, ou com outra alguma doença grave […] e alguns
morrem mais cedo, principalmente os velhos, ou melancólicos, ou desanimados.
Os cristãos-novos de Portugal, nos seus 31 Gravames, apresentados à Sagrada
Congregação do Santo Ofício (maldito),
dão notícia de outro vexame. Não deixam de meter, em companhia do mesmo preso,
pessoa instruída, que fingindo-se preso, e vexado no mesmo modo, o induz a se
confiar dela, do qual depois como testemunha depõem, e ajuntam outros que fazem
estar ouvindo os discursos sobreditos, e igualmente se examinam». In
António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1,
Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da
Leitura, 1987.
Cortesia Caminho/JDACT