Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«(…) Isto traz à colação, quer dizer, cola, o que atrás se disse sobre
o papel da imaginação em Sohravardi. A imaginação tem natureza análoga a partes
próximas do extra-mundo; por esse motivo pela imaginação a alma encarnada pode
regressar ao lugar de origem. O sonho é pois parcela importante da imaginação e
não apenas pelo tempo que ocupa na vida de cada um mas pela natureza contínua e
real das imagens em que o sonhador mergulha. Não admita pois que seja a sonhar que o sujeito do poema de 1907 procure o veio de luz do
extra-mundo. Recordo que a propósito de Sohravardi alertei para a necessidade
de valorizar a imaginação. Sem isso o contacto com o além mundo perde-se ou
quebra-se. Isto quer dizer que a alma necessita de tornar cada vez mais real,
cada vez mais presente, cada vez mais sentido o mundo das imagens que lhe é
aberto pela imaginação. O que se vê em imaginação não pode ser degradado pelo
intelecto, ou desvalorizado por ele, como hoje acontece. A civilização da imagem
é um dolo descarado, já que ninguém acredita hoje na imagem, nem os que a fazem
nem os que a vêem, nem os que a vendem nem os que a compram. A imagem está hoje
ao nível duma simples brincadeira inconsequente ou duma triste imbecilidade. É
a Disneylândia do espírito, sem espessura de realidade, a não ser a facturação
da indústria cultural. Mesmo uma criança, para quem a imaginação parece ser a
única força actuante, porventura porque a alma acabou de encarnar no vaso, fica
apática ante a cinemática de Hollywood; nem uma beliscadura, nem um grito,
apenas a ruminação suculenta, o estalar na boca da pipoca com a calda de açúcar
refinado.
Quão longe vão os tempos, sem cinema, sem animação luminosa de bonecos,
sem electricidade, em que as meras histórias da carochinha, contadas boca a
boca, entre analfabetos, ou transpostas por actores anónimos, providos de
máscaras para um simples tablado de madeira carunchosa, podiam produzir no ouvinte
ou no espectador, fosse pequeno ou grande, homem ou mulher, um suor lívido de
terror, um grito de pavor. Nos antípodas da desvalorização da imagem está a
experiência do autor que escreveu As
Sombras. Leia-se a realidade que ele empresta ao sonho, fruto do muito
convívio com ele:
O Sonho e o amor
são tão reais que, às vezes, nos parecem
tangíveis e palpáveis; podem ver-se!
(em A Sombra da Vida, décima
estrofe)
As imagens no caso dele tocam-se; são tão sensíveis e tão verdadeiras
como a realidade material. Não são simples passatempo, para entreter tempos
mortos, que só por ironia se chamam também livres, como sucede na Disneylândia
moderna, mas um mundo real, vivo e palpável». In António Cândido Franco, Notas
para a Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora
Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.
Cortesia de Licorne/JDACT