segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Quatro Orações Camonianas. Academia Portuguesa da História. Aníbal Pinto Castro. «Leva na cabeça o pote, o testo nas mãos de prata, cinta de fina escarlata, saínho de chamalote; traz a vasquinha de cote, mais branca que a neve pura; vai fermosa, e não segura»

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Camões e a Língua Portuguesa
«(…) Deste modo, Camões possuía, como nenhum dos poetas seus contemporâneos e como poucos outros em toda a literatura portuguesa, um domínio completo dos recursos da língua portuguesa, desde o estilo mais coloquial ao mais deliberadamente poético. Quando, em momento de folga, o desejo de enganar a saudade com zombeteira ironia o leva a dar a um amigo as suas impressões das damas de Goa, o culto leitor de Petrarca e Boscán sabe encontrar a suprema graça do dizer na linguagem colorida e faceira do quotidiano viver: as notícias acerca das damas são tão obrigatórias numa carta de rapazes como marinheiros à festa de S. Pedro Gonçalves; as senhoras portuguesas caíam de maduras; as da terra, além de serem de rala, não entendiam as delicadezas poéticas, respondendo aos galanteios dos adoradores com üa linguagem meada de ervilhaca, que travava na garganta do entendimento e lançava água na fervura da mor quentura do mundo; e as saudades das belezas de Lisboa, rostinhos de tauxia, que chiavam como pucarinho novo com a água, tornavam-no mais enfastiado daquela carne de salé...
Recorrendo a um nível de linguagem muito próximo deste, criou Camões algumas das suas mais belas composições na medida velha. Recordarei apenas as voltas ao moto Decalça vai para a fonte:

Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
saínho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,
cabelos d'ouro o trançado,
fita de cor d'encarnado,
tão linda que o mundo espanta:
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.

Quando, porém, nos sonetos, nas elegias, nas odes, nas églogas ou nas redondilhas Sôbolos rios, exprime o drama interior do seu incerto estado amoroso, as pungentes lembranças de Sião e as santas reminiscências da Jerusalém Celeste ou o desencantado engano da vida, marcada pelo duro fado, a linguagem camoniana como que se sublima numa extraordinária riqueza sémica e numa etérea eurritmia, para encontrar com imarcescível beleza os signos mais adequados à expressão de estados emocionais ou intelectuais caracterizados pela delicada subtileza psicológica, pela pura abstracção mental, pelo intenso sofrimento moral ou pela angústia escatológica do pecador arrependido». In Aníbal Pinto Castro, Camões e a Língua Portuguesa, Quatro Orações Camonianas, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1980.

Cortesia da APHistória/JDACT