domingo, 12 de janeiro de 2014

O Livro Negro. Hilary Mantel. «Todos nós, homens e mulheres de Inglaterra, temos ainda nas nossas veias algumas gotas de sangue de gigante. Nesses tempos antigos, numa terra não profanada pelas ovelhas ou pelo arado, caçavam o javali e o alce. A floresta estendia-se à frente deles por muitos dias»

Cortesia de wikipedia e jdact

Falcões. Wiltshire, Setembro de 1535
«(…) Na casa que tem na cidade, em Austin Friars, o seu retrato sobressai na parede; está envolto em lã e peles, a mão enclavinhada em volta de um documento como se o estivesse a estrangular. Hans empurrara uma mesa para trás para o encurralar e dissera Thomas, não podes rir; e tinham prosseguido nessa base, Hans cantarolando enquanto trabalhava e ele de olhar ferozmente fixo na média distância. Quando viu o retrato acabado, exclamou: Deus me valha, pareço um assassino; e o seu filho Gregory disse não sabíeis? Estão a ser feitas cópias para os amigos e para os seus admiradores entre os evangélicos da Alemanha. Não quer separar-se do original, agora não, que já me habituei a ele, costuma dizer, e assim, quando entra em sua casa, encontra versões de si próprio em vários estádios de evolução: um esboço provisório, parcialmente passado a tinta. Com Cromwell, por onde começar? Há quem comece pelos seus pequenos olhos argutos, há quem comece pelo chapéu. Há quem eluda a questão e pinte o seu selo e tesoura, outros escolhem o anel de turquesa, oferecido pelo cardeal. Por onde quer que comecem, o impacto final é o mesmo: se tivesse qualquer agravo contra nós, não gostaríamos de o encontrar na escuridão da Lua. Walter, o pai dele, costumava dizer: O meu rapaz Thomas, ele é assim, olhai mal para ele e vaza-vos o olho. Passem-lhe uma rasteira e corta-vos a perna. Mas se não se atravessarem no seu caminho é um verdadeiro cavalheiro. E paga um copo a qualquer pessoa.
Hans retratou o rei, benévolo nas suas sedas de verão, sentado com os seus anfitriões depois de cear, as portadas abertas ao trinado tardio dos pássaros, as primeiras velas a entrarem com as frutas cristalizadas. Em cada etapa da sua progressão, Henry detém-se na casa principal, com a rainha Anne; a sua comitiva pernoita com os fidalgos locais. É costume os anfitriões do rei, pelo menos quando o rei está de visita, receberem esses anfitriões periféricos em jeito de agradecimento, o que sobrecarrega os arranjos domésticos. Ele contou os carros de provisões que entraram; viu as cozinhas postas em alvoroço e ele próprio foi lá abaixo àquela hora verde-cinza antes do amanhecer, quando os fornos de tijolo são esfregados para estarem a postos para a primeira fornada de pães, enquanto as carcaças dos animais são postas no espeto, as panelas colocadas nos tripés, as aves depenadas e desmanchadas. O seu tio foi cozinheiro de um arcebispo, e, em criança, ele frequentava as cozinhas do palácio de Lambeth; conhece a matéria de trás para a frente e nada do que diz respeito ao conforto do rei deve ser deixado ao acaso.
São dias perfeitos. A luz clara e desanuviada destaca cada um dos bagos que cintilam nas sebes. Cada folha de árvore, com o sol por trás, pende como um fruto doirado. Viajando para oeste no pino do verão embrenhámo-nos em cavalgadas silvestres e subimos à crista das colinas, emergindo naquelas terras onde, de condado para condado, se pode sentir a presença ondulante do oceano. Nesta parte de Inglaterra, os nossos antepassados, os gigantes, deixaram as suas fortificações, os seus túmulos e os seus monumentos de pedra. Todos nós, homens e mulheres de Inglaterra, temos ainda nas nossas veias algumas gotas de sangue de gigante. Nesses tempos antigos, numa terra não profanada pelas ovelhas ou pelo arado, caçavam o javali e o alce. A floresta estendia-se à frente deles por muitos dias. Às vezes, são desenterradas armas antigas: machados que empunhados com as duas mãos podiam cortar ao meio cavalo e cavaleiro. Pense-se nos grandes membros desses homens mortos, que estremecem debaixo de terra. A guerra era a sua natureza e a guerra está sempre desejosa de voltar outra vez. Não é só no passado que se pensa enquanto se cavalga através desses campos. É no que está latente na terra, o que está a nascer; são os dias que virão, as guerras por travar, os ferimentos e mortes que, como sementes, o solo de Inglaterra mantém quentes. Pensaríamos, ao ver Henry rir, ao ver Henry rezar, ao vê-lo conduzir os seus homens pelos trilhos da floresta, que está tão seguro no trono em que se senta como no cavalo que monta. À noite, jaz acordado; observa as traves do tecto trabalhado; conta os seus dias. Diz Cromwell, Cromwell, que hei-de fazer?" Cromwell, salva-me do Imperador. Cromwell, salva-me do Papa. Chama depois o seu arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer, e quer saber: A minha alma está condenada?» In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.

Cortesia de Civilização/JDACT