O treino e a formação dos comandantes militares na Idade Média
«(…) Cavalgar era a primeira actividade proposta para a instrução do guerreiro
e uma das que mais cedo devia ser aprendida, o que se compreende perfeitamente
em virtude das características dos exércitos medievais profundamente assentes na
importância táctica da cavalaria. E como afirmava um provérbio bastante
conhecido em meados do século IX: um
cavaleiro pode ser feito na juventude, mas raramente ou nunca na idade adulta.
Saber montar era uma componente fundamental da preparação do jovem combatente,
já que grande parte da sua vida seria passada na sela. Daí a importância dada
pelo monarca Duarte I a esta actividade, ao ponto de ter sido O Eloquente a escrever o primeiro tratado
de equitação do Ocidente Medieval, o Livro da Ensinança de Bem
Cavalgar toda a Sela. Seguidamente vinha o manejo das armas, tal como
era preconizado nas Siete Partidas. O aprendiz passaria, assim, boa parte do seu
tempo a treinar-se no manejo da espada, com aulas de esgrima, durante as quais
aprenderia também a utilizar adequadamente o escudo. Para além disso, era
também adestrado no uso da lança, dedicando-se, por exemplo, ao jogo da quintana, uma actividade, praticada
a cavalo, que consistia em atingir com a ponta da lança, em plena velocidade -
com a lança deitada, como numa
carga de cavalaria, o escudo preso no braço transversal de um manequim fixo a
um poste e em esquivar-se do golpe desferido pelo outro braço do manequim. Para
além da quintana, era também
comum os cavaleiros exercitarem a sua perícia e agilidade tentando, a galope no
dorso do cavalo, enfiar a ponta da lança num pequeno anel suspenso por um fio.
Nesse sentido, por associar esses dois tipos de exercícios, cavalgar
e brandir armas, não admira que todos reconhecessem ser a caça e em particular
a montaria que mais utilidade tinha para o apuramento das capacidades
guerreiras, sendo mesmo considerada como um autêntico exercício de preparação
para a guerra, ou seja, uma actividade
propedêutica da guerra, como lhe chama Carlos Guilherme Riley. É o próprio
João I, autor de um tratado de montaria, o Livro de Montaria, a afirmar que
este era o mais proveitoso dos jogos. Caçavam-se ursos, javalis, lobos,
gamos, cervos e onagros, animais de médio e de grande porte que o cavaleiro
perseguia a cavalo e contra os quais arremetia devidamente equipado e armado de
lança, como se de um combate se tratasse, conforme se observa, por exemplo, na
cena de caça representada no túmulo de Fernão Sanches, actualmente no
Museu Arqueológico do Carmo. Na montaria o combatente podia ainda, em último
caso, ser obrigado a lutar corpo-a-corpo com o animal, o que, como se
compreende, acarretava também alguns riscos.
Mas era a participação regular em actividades paramilitares como os torneios
e as justas que permitia aos cavaleiros, designadamente aos nobres, apurar, num
ambiente semelhante ao da guerra, mas em que os riscos de serem feridos ou de
perderem a vida eram consideravelmente mais reduzidos, as suas capacidades
marciais. Para além disso e de uma inegável componente lúdica, estes desportos tinham também a vantagem
de permitir aos combatentes a partilha de ideias, experiências e valores e a obtenção,
caso fossem bem-sucedidos, de importantes benefícios materiais, o que, sem dúvida,
ainda também a explicar o seu sucesso e expansão for praticamente todo o
Ocidente Medieval. Surgidos tos finais do século XI e popularizados a partir do
século XII, os torneios eram combates disputados a cavalo entre duas equipas,
primeiro com a lança e depois, quebrada esta, com o recurso à espada ou a
outras armas próprias para a luta corpo-a-corpo, nomeadamente a maça, a acha, ou
o cacete, embora haja também referências, se bem que esporádicas, à utilização
de arcos e de bestas. O combate decorria num terreno bastante amplo e com
algumas irregularidades, elevações, zonas arborizadas, cursos de água, etc., e
delimitado por liças ou barreiras tipo sebes, que constituíam áreas neutras
onde os combatentes encontravam refúgio para descansar e deixar os seus
prisioneiros e que, como tal, deveriam ser rigorosamente respeitadas pelos
oponentes. O objectivo destas batalhas
simuladas, consistia em derrubar e aprisionar os cavaleiros da equipa
adversária. Através deste jogo, aprendia-se e exercitava-se tudo aquilo que era
essencial na guerra: a disciplina, a manobra, a carga ordenada da cavalaria com
lança e espada, etc.. Eram, assim, particularmente importantes não só para o
treino dos combatentes, mas também para a formação dos mais jovens que podiam,
desta forma, entrar em contacto com a dura realidade da guerra, isto é, sentir os seus dentes a quebrar, ver o
seu próprio sangue a ser derramado, sofrer golpes e quedas do cavalo, pois
apesar de serem disputados, de um modo geral, com armas embotadas e de o
objectivo final ser aprisionar e não matar, os percalços aconteciam e não
seriam tão raros quanto isso. De facto, os acidentes mortais, no decorrer de um
torneio ou de uma justa, deviam ser relativamente numerosos, tais como os efeitos
nefastos das quedas mais aparatosas, como quando o guerreiro caía do alto da
montada sobre as suas armas de ferro. Como sintetiza João Gouveia Monteiro,
estes desportos não eram para medricas.
Apesar de ser em França e na Inglaterra que os torneios tinham uma
maior popularidade, nem por isso eram desconhecidos na Península Ibérica.
Relembre-se apenas o que teve lugar em Arcos de Valdevez em 1141, envolvendo combatentes
portugueses e leoneses e que acabou por degenerar numa autêntica batalha campal,
ou ainda os que tiveram lugar em Trancoso, em 1282, para celebrar o casamento de Dinis I e de D. Isabel de Aragão».
In
Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.
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