sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Sátira na Literatura Medieval Portuguesa. Séculos XIII e XIV. Mário Martins. «Antes um pequeno barco e ir ao longo da costa, a vender azeite e farinha, para evitar o veneno dos lacraus! Não me alegro de atirar lanças ao tabulado nem de bafordar! De noite andar armado e fazer rondas, vontade não tenho»

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Afonso X e os Soldados
«(…) E a sua indignação desafoga-se contra os que recusaram acompanhá-lo na guerra, ao sul, contra os muçulmanos: … nunca eu cinja espada em boa bainha, se Pero Espanha, ou Pero Galinha, ou Pero Galego forem comigo! Outrem me acompanhará. Mendo Candarei pretextara também qualquer dificuldade e não fora com ele. Fuão deixou-o sozinho na guerra da Andaluzia e o rei sentia vontade de mandar ao demo a honra deste mundo, as armas e o batalhar. O que faz chorar um homem não é brincadeira nenhuma! Chorar e rir, por exemplo nesta sátira contra os guerreiros de menor categoria (coteifes), alguns deles a tremer no meio do Verão, diante dos cavaleiros mouros de Azamor:

O genete
pois remete
seu alfaraz corredor:
estremece
e esmorece
o coteife con pavor.
[...]

Vi coteifes de gran brio
eno meio do estio
estar tremendo sen frio
ant’os mouros d’Azamor;
e ia-se deles rio
que Auguadalquivir maior

Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e não trouxe cavaleiros, maldito seja! O que recebeu grande soldada e nunca fez cavalgada, se é rico-homem ou há mesnada, maldito seja! Não se trata de cantiga para rir. Temos, aqui, uma invectiva, algo da maldição dum profeta atraiçoado e sozinho. Invectiva cheia de troça, como aliás noutra cantiga quase logo a seguir: Quem da guerra levou cavaleiros e foi guardar dinheiros à sua terra; quem não dava pão a comer aos soldados; quem, por medo, foi para casa beber vinho; quem fugiu da fronteira ou andou a roubar os mouros e foi para a sua terra roubar cabritos, esse non ven al maio. Quer dizer, não vem à revista da tropa, ao alardo. Iam para a guerra a fingir. E alguns levavam pendão, mas não levavam caldeira. Nunca pensaram numa campanha a sério, com soldados para alimentar.
Porém, a obra-prima do mundo satírico do rei Afonso X nasceu quando este andava pelos 60 anos de idade: uma poesia fresca e ágil, embalada pelo sonho duma vida livre das obrigações do governo. Com tintas que parecem dum poeta moderno, diz Rodrigues Lapa, Afonso X põe-se no estado psicológico de quem despiu o manto real e quer ser outro, um negociante, por exemplo, a navegar livremente no mar livre, longe da terra, da política e da guerra: Estou farto do canto das aves, do amor e das armas. Antes um bom galeão que me afaste depressa deste diabo de terra cheia de lacraus, cujo aguilhão senti na alma! Juro por Deus que não andarei de capa, nem com barbas, armas ou razões de amor! Tudo isso me cansa e, volta e meia, me faz chorar. Antes um pequeno barco e ir ao longo da costa, a vender azeite e farinha, para evitar o veneno dos lacraus! Não me alegro de atirar lanças ao tabulado nem de bafordar! De noite andar armado e fazer rondas, vontade não tenho. Gosto mais do mar, pois já fui marinheiro. E por causa dos lacraus, prefiro tornar ao que fui antigamente! Não me falem de guerras! Antes andar sozinho e ir, como um mercador, em busca dalguma terra onde não haja lacraus negros nem pintalgados! Há outras cantigas de troça, contra vassalos sovinas, poetas plagiários ou de expressão menos ortodoxa, pedinchas, maus cantores, fidalgos ridículos no trajar, manhosos, etc. Algumas dessas cantigas de escárnio têm graça. Contudo, afastam-se do núcleo central da guerra andaluza». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT