Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«Em 2008, participei num
colóquio internacional em São Salvador da Baía sobre trabalho forçado.
Tratava-se de um congresso de História, comemorativo dos 120 anos da abolição
da escravatura no Brasil, e não foi sem surpresa que vi, entre a
documentação distribuída no primeiro dia, um pequeno autocolante com uma
mensagem cujas palavras não recordo com rigor, mas cujo sentido era diga não à escravidão, autocolante que
quase todos afixámos no exterior das pastas ou no peito da camisa. E, num dos
dias seguintes, circulou entre os participantes um abaixo-assinado exigindo
maior rigor no combate ao trabalho escravo no Brasil. Em suma: estava vivo o monstro cuja data do
funeral vínhamos comemorar. O Brasil praticava na circunstância, um acto
de coragem, assumindo que a escravatura existia e que isso acontecia no seu
próprio país. Soube, aliás, na altura, que o governo brasileiro aprovara nesse
mesmo ano um projecto, denominado Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas, que tinha como objectivos, além da atenção às vítimas, a
prevenção do tráfico e a repressão e responsabilização dos seus autores.
O problema está, porém, longe de ser apenas um problema brasileiro.
Embora muitos Estados procurem ocultar essa realidade, a verdade é que a
questão da escravatura e do tráfico de escravos continua a pôr-se, nos nossos
dias, a nível absolutamente mundial, mesmo que com significativas variantes
regionais. Não tem cabimento a ideia, corrente na Europa, de que o tráfico de escravos
terminou quando, em meados do século XIX, teve fim o tráfico transatlântico que
deportou milhões de africanos para as Américas. É certo que perdeu o carácter
público que tinha nos séculos XVII ou XVIII e já não chegam aos nossos portos
veleiros carregados de lamentos e de homens agrilhoados. Mas o fantasma dos navios negreiros persiste sempre que um ser
humano, seja qual for a sua
cor de pele, é transacionado como se fora um utensílio agrícola ou um animal
doméstico.
Nas sociedades ocidentais, onde a escravatura e o tráfico de escravos pareciam
ser, até há pouco, coisa definitiva do passado, a linguagem corrente foi
alargando o emprego do léxico associado à escravatura a condições e situações
que só remotamente têm a ver com o seu sentido original, tendo ganho um
significado essencialmente metafórico. Assim, é com facilidade que falamos de
escravos a propósito de indivíduos em situação de dependência de outra pessoa (escravos
de amantes, de filhos, de progenitores), de uma coisa (escravos de um
vício; escravos da moda) e até de uma ideia ou de uma religião. E também
podemos ouvir autointitularem-se escravos aqueles que desenvolvem uma actividade
que, mesmo que compensadora, impõe uma sujeição acima do habitual ou cuja
retribuição não corresponde ao esforço despendido. Em 2011, entre os jovens portugueses inconformados com a situação social
e política, tornou-se quase um hino uma canção que dizia: ...Sou da
geração sem remuneração / e não me incomoda esta condição. / Que parvo(a) que
eu sou! / Porque isto está mal e vai continuar, / já é uma sorte eu poder
estagiar./ Que parvo(a) que eu sou! / E fico a pensar, / que mundo tão parvo /
onde para ser escravo é preciso estudar.
Naturalmente, não é desta escravatura metafórica que falamos quando
falamos nos escravos contemporâneos. Em muitos lugares do Mundo, há mulheres,
homens e crianças cuja liberdade pertence a outros, que os utilizam para os
trabalhos mais violentos ou mais ignóbeis. A Organização Internacional do
Trabalho calcula que o tráfico de pessoas possa movimentar 32 mil milhões
de dólares por ano, pelo que é apontado como uma das actividades criminosas que
mais lucros proporcionam. Mesmo na União Europeia, considera-se que o tráfico
de seres humanos está a aumentar nos últimos anos, gerido por redes de grupos
organizados provenientes sobretudo da Europa Central e de Leste. Segundo um
documento oficial de 2010, as
mulheres e as crianças, as principais vítimas, são, na maioria dos casos, transportadas além fronteiras e obrigadas
a prostituírem-se ou a executar trabalhos forçados. As crianças vítimas de
tráfico são também exploradas e obrigadas a praticar a mendicidade ou actividades
ilegais, tais como pequenos furtos. Preocupados com essa evolução, o
Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram em Abril de 2011 uma nova directiva relativa à prevenção e luta contra esse
tipo de tráfico». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império
português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera
dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.
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