Espelho. Reflexão. A Lógica do Espelho Central
«(…) O
problema principal das duas cenas centrais reside pois na correcta
identificação da natureza das figuras equipadas militarmente, presentes no que
já antes chamámos um painel de
igualdade, em contraste com o outro painel central de
ambiência familiar de onde os equipamentos militares estão ausentes.
NOTA:
Quando, para designar o painel «do
Arcebispo», se escolhe uma das figuras do plano mais recuado, integrada no background
genericamente composto por elementos do clero, não se faz mais que sublinhar a
ausência de individualização das cinco figuras principais que rodeiam a figura
central. Parece ter havido uma intenção de «igualizar» os cinco de forma
subtil, como resulta de uma comparação com o painel dos Cavaleiros, onde cada
figura possui uma personalidade própria e assertiva, veste de modo distinto das
restantes, e ostenta armas individualizadas providas de ricos ornamentos. Em
contraste, os cinco do painel do Arcebispo, e em especial os dois dianteiros,
apresentam fisionomias e expressões pouco assertivas, vestem de forma
semelhante, a ponto de se poder dizer dos mesmos dois mais avançados que estão
uniformizados dos pés à cabeça, e as suas armas são idênticas e de aspecto
singelo, compare-se a espada desprovida de ornamentos do primeiro plano
deste painel com as do painel dos Cavaleiros, ou as cotas de malha simples e
idênticas envergadas pelas cinco figuras, quatro delas por baixo de couraças ou
brigandinas iguais duas a duas, com a rica e ornamentada cota de malha da figura de vermelho no painel dos Cavaleiros.
O equipamento militar que as figuras em destaque avançado desse painel dos iguais envergam, muito similar, por exemplo, ao equipamento estilizado dos numerosos soldados presentes nas tapeçarias de Pastrana, até ao pormenor das orlas inferiores douradas das cotas de malha, parece, por seu lado, corresponder ao que seria de esperar em representações iconográficas de soldados uniformizados da segunda metade do século XV. O seu uniforme, isto é, as suas cores senhoriais, a libré (real ou convencionada pelo pintor) que indica a sua pertença a uma determinada casa ou facção, parece muito mais convincente sob essa perspectiva do que a extraordinária ideia de um rei com a sua indumentária copiada a papel químico e reproduzida a seu lado através de uma outra figura ostentando uma impressionante expressão de ausência de inteligência. Adiante veremos que o uso das cores, nos soldados como nas restantes figuras, é ainda muito mais subtil do que isso, transportando todo um mundo de intenções significativas.
Considere-se,
por exemplo, a brigandina composta de pedaços de metal sobrepostos, unidos por
rebites e cobertos por um forro e pelo tecido que fica visível do lado de fora,
onde os rebites preenchem igualmente funções decorativas. É precisamente essa a
peça de equipamento militar genérico mais usual nas numerosas iluminuras
representando recontros militares em crónicas francesas ou inglesas da época.
Não é importante indicar aqui uma longa série de referências tendente a
documentar a maior ou menor utilização genérica nos exércitos europeus de peças
de armadura mais reduzidas que em épocas anteriores, e de brigandinas flexíveis
na linha da lorica segmentata
da antiguidade romana, porque nos interessa sobretudo chamar a atenção para o
que seria de esperar numa representação
iconográfica convencional de um rei ou personagem de calibre real
equipado militarmente.
Mesmo
num período em que o equipamento mais ligeiro substitui a armadura tradicional,
um
rei ou nobre importante aparelhado para a guerra é sempre representado, ou de
armadura completa e cerimonial com ornamentos sugestivos de
magnificência e poder, muitas vezes alusivos à sua própria identidade através
dos seus emblemas pessoais, ou eventualmente em traje mais prático, mas
igualmente ornamentado de forma que não permite a confusão com a indumentária
de um simples soldado. Compare-se, a título de exemplo, a representação de
Afonso V empunhando o seu bastão dourado de comando, nas tapeçarias de Pastrana,
com a representação de soldados borgonheses, numa gravura de Bruges ( c.
1465 - 85): note-se a simplicidade da indumentária militar dos
soldados, a sua semelhança com a das duas figuras avançadas do painel por
alguma razão dito do Arcebispo, e o seu contraste com o inconfundível equipamento
militar de um rei, sempre aparatoso, singular e sem duplicados. Se o rei fosse
representado de brigandina, ela deveria ostentar elementos luxuosos como
tecidos de brocados ou elaboradas peças decorativas de ouro ou prata,
observe-se mais uma vez a simplicidade do seu revestimento verde-escuro
incrustado de vulgaríssimos rebites, e se empunhasse uma lança, seria muito
provavelmente uma lança pessoal coberta, como as suas restantes armas, de
ornamentos e emblemas, e não um simples chuço de combate igual aos das
restantes figuras do painel que empunham armas desse tipo, muito mais
sugestivas de soldados que se dissolvem numa formação de combate que de
individualidades importantes e reconhecíveis.
As tapeçarias de Pastrana, cujos cartões são com frequência
atribuídos ao mesmo pintor, são um exemplo instrutivo: praticamente todos os
soldados envergam brigandinas idênticas às dos painéis, e o seu contraste com a
figura inequívoca do rei, com
armadura coberta de tecido com ricos brocados e ornamentos de ouro, é completo.
A conclusão razoável é a de que nos
dois painéis centrais figuram de um lado a realeza, representada por dois
casais e uma criança, e do outro simples soldados com vestuário e equipamento militar
a condizer com a sua condição». In
António Salvador Marques, Painéis de São
Vicente de Fora.
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