A Legislação da Reconstrução
«(…) As instruções do
decreto de 12 de Junho de 1758
classificam as ruas principais
e atribuem-lhes a largura máxima de sessenta palmos, com dez de cada lado para
os passeios, e cloacas, cuja construção e conservação adviriam aos
proprietários fronteiros. Passeios também nas ruas secundárias, de quarenta
palmos, cuja utilidade para a liberdade
do ar e da luz era sublinhada, numa consciência urbanística e sanitária
nova. A altura das casas era ali regulamentada, aferindo-a pela dos edifícios
do Terreiro do Paço e já não com dois andares mas com o número deles que
coubessem em tal pé direito; o desenho das fachadas, ainda não fixado,
determinava, porém, sacadas nos primeiros andares e janelas de peito nos
outros, nas ruas principais, e só janelas de peito nas outras vias, prevendo portais
especialmente tratados em ruas como as de S. Francisco e de S. Roque, de
modo a distinguirem casas nobres.
As ruas principais seriam
aquelas que corriam no sentido S.-N., ligando as duas praças, e que receberiam
os nomes de Augusta, a do meio, Áurea, a sua paralela a poente, e (mais
tarde) Bela da Rainha, a nascente (hoje da Prata), embora só as duas primeiras fossem mencionadas como ruas nobres; mas também seria
considerada principal uma outra rua correndo transversalmente e que receberia o
nome de Nova d'El-Rei. Era, de certo modo, a antiga e tradicional Rua Nova dos
Ferros, disciplinada na nova malha mas ressuscitada, e sempre paralela,
afinal, à face norte do Terreiro do Paço, no ponto onde uma rua importante
continuava a ser necessária à imagem urbana.
O programa de Manuel
Maia, figurado por Eugénio Santos no seu projecto tomava definitivamente forma.
A cidade, ordenada e rígida, ia nascer. Quero
que prefira como deve preferir ao interesse particular (…) a utilidade pública
da regularidade e formosura da capital destes reinos em todas as ruas»,
afirmava José I (ou Pombal) no decreto de 12 de Junho. Cada casa da Baixa
entrava na sua fileira para preservar o interesse geral. Privilégios antigos desapareciam;
e, entre eles, mencionava-se os das leis zenonianas, de carácter consuetudinário,
que asseguravam desafogo de vistas. Era evidente que o direito de propriedade
assim tradicionalmente considerado não convinha à ordenação pombalina, e a Baixa
dava exemplo ao resto da cidade, como bairro-piloto. Marcada a sua cércea pela
do Terreiro do Paço, a Baixa dependia também dele, em certa
medida, e já vimos como a reestruturação da praça orientou a sua própria
definição.
A Praça do Comércio
O Terreiro do Paço foi
objecto dos cuidados de Manuel Maia logo na primeira parte da sua dissertação,
ao prever as boas entradas que
para a cidade renovada se poderiam fazer naquela praça; e a terceira parte do
memorial era acompanhada por um alçado-tipo a ela destinada, desenhado por
Eugénio Santos e hoje perdido, que representava uma forma de edifício mais nobre (…) com seus pórticos com mezzaninos contra as inclemências do tempo,
dois pavimentos de janelas rasgadas, dos quais um se poderia abater parecendo
grande a altura, e outro pavimento de mezzaninos junto dos telhados. A
monumentalidade da praça estava assim assegurada, e relacionada com o seu
aspecto anterior, com a Galeria das Damas, em arcadas do
lado poente, e com o próprio torreão de Tércio, padrão dos
torreões que Eugénio Santos desenhou como termo das duas alas que agora avançavam
para o rio. A duplicação deste pavilhão, já célebre na imagem lisboeta anterior
ao terramoto, fora encarada, provavelmente, depois de 1750, quando se pensara transformar todo o Terreiro do Paço, conforme
projecto anónimo, mas de que Maia tinha com certeza conhecimento.
Um arco de triunfo, a meio da face norte, e, uma estátua equestre levantada ao
centro desta praça, e também pensados cerca de 1759, com desenhos de Eugénio Santos, contribuíam para a
nobilitação do conjunto, que seria levantado numa planta geral de 177 metros (sentido
S.-N.) por 192,5 metros (sentido E.-O.).
Nele seriam os
comerciantes da capital autorizados, por decreto de 16 de Janeiro de 1758, a edificar uma bolsa, ou praça,
que anteriormente se reunia sob as arcadas da Rua Nova dos Ferros e que
seria custeada pelo próprio donativo dos quatro por cento feito à coroa. Daí
veio, certamente, o novo topónimo do local: Praça do Comércio, que passou de designação do edifício ao sítio
onde este se ergueu. O que, depois de ter sido Terreiro do paço real
desaparecido, se desenhava como uma praça
real, na tradição europeia, a que o monumento do rei completaria a
razão de assim ser chamada, tornava-se numa praça cujo nome homenageava uma
função e uma classe de importância fundamental na sociedade pombalina. O
deslizar semântico ajustava-se ao desígnio ideológico e político. O novo nome
aparece já em 1759, num aviso de Pombal, e nos desenhos
que vimos e, embora, mais tarde, surja a designação Real Praça do Comércio (sobretudo
na altura da inauguração da estátua equestre), o adjectivo áulico não teve
curso oficial». In José Augusto França, A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura
Pombalina, Director da Publicação António
Quadros, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da
Minerva do Comércio, Instituto Camões, 1986.
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