Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
iniciadas.
«(…) Que lhe fosse, entretanto, dada a oportunidade de se defender de
todas as acusações e que dessa defesa se fizesse detalhado registo, para
constar da memória histórica, à qual nem governantes nem governados se deverão
eximir de prestar contas. Que se fizesse igualmente registo de todas as falas e
outros testemunhos considerados relevantes para o apuramento da culpa ou da
inocência de Sebastião José de Carvalho Melo, conde de Oeiras e marquês
de Pombal. Na manhã em que os homens de leis rumaram a Pombal, a rainha
experimentou uma rata sensação de alívio, ajoelhou-se e rezou, e, nessa noite,
pela primeira vez em meses, não foi atormentada por pesadelos nem viu o pai a
debater-se, mirrado e ardente, com as infernais chamas do castigo divino.
Aspirava a rainha a ver-se livre de um fantasma ainda vivo, o do marquês,
que lhe consumia a alma como se fosse um enviado de Lúcifer para lhe infernizar
a vida. Se queria em seu redor uma Corte apaziguada e respeitadora dos
preceitos, das regras e das distâncias protocolares, precisava de sentir que
Pombal agonizava dia a dia, porquanto o seu sofrimento era o preço do resgate
da sua tão almejada paz de espírito. Nas ruas, o povo ainda reclamava a
condenação de Pombal, o mesmo que anos antes fizera renascer Lisboa das cinzas
e dos escombros da catástrofe, mas nenhuma dessas vozes chegou aos aposentos
reais, muito menos aquelas que, em surdina, começavam já a murmurar: Mal
por mal, antes Pombal.
Vai declinando a luz no horizonte dos meus dias breves. Sinto que o fim
se aproxima pela mão da doença e do cansaço. Que de mim não se espere já alento
ou vontade para contrariar este inexorável declínio. Em Lisboa, os meus
inimigos, que são muitos, desfraldaram as bandeiras do triunfo depois da minha
partida e tudo fizeram para eu ser condenado, de preferência em julgamento
público e com sentença capital. Mas eu sei que não se irá tão longe, embora
existam outras formas de condenar um homem e de executar, mesmo que não seja
necessário fazê-lo subir ao cadafalso. O que de mim se diz talvez não seja o
que sobre mim se sente. E há uma voz cá dentro que me acompanha e interroga
sempre que as certezas ameaçam não prescrever e as dúvidas se amotinam no meu
espírito para me roubarem a paz a que aspiro. Não pode um homem de Estado
queixar-se da ingratidão da Pátria ou daqueles que serviu, pois é sentimento
que quase nunca existe em relação a quem teve sobre os ombros o peso da governação.
Não é o povo que é ingrato; é a memória dos homens que tende a encurtar-se no
escrutínio da História quando se trata de deitar contas ao que foi o exercício
do poder. Longo, muito longo e tantas vezes árduo foi o caminho que percorri
até chegar ao ponto em que hoje me encontro, ao todo vinte e sete anos,
revisitando datas, nomes, lugares, feitos e desaires. Que ninguém espere de mim
a lamúria ou autocomiseração por qualquer tragédia que me tenha assombrado a
vida. Apenas uma me abalou o corpo e a alma, e falo do terramoto que assolou Lisboa
em 1755. Foi a prova mais dura que
Deus e a vida quiseram pôr-me no caminho, confrontando-me com a magnitude de uma
dor colectiva e de uma destruição nunca antes conhecidas pelas gentes da nossa
terra. Arregacei as mangas, juntei homens e vontades, cabedais e muita valentia,
e ordenei que sobre os escombros nascesse não apenas uma nova capital mas uma
nova mentalidade, uma outra maneira de sentir e de pensar Portugal. E eis que a
voz interior me pergunta: …terá sido
este o melhor caminho, o mais justo, o que não faz de um homem um déspota?
E eu contenho-me e calo-me, pois nem as vozes que nos habitam, sejam elas de
Deus ou da nossa consciência, merecem outra resposta que não seja a do silêncio
que medita e aconselha. A verdade é que parte do meu desígnio foi cumprida; a
restante só o tempo o poderá dizer.
Herói? Nunca tal
estatuto ou condição reclamei. Fui somente um homem de Estado, um governante
dedicado que serviu o seu soberano e a sua Pátria, sem todavia descurar a
atenção que sempre deve ser reservada a quem, sediciosamente, tenta lançar por
terra, em nome de privilégios e títulos há muito acumulados, o que, esforçadamente,
outros conseguiram erguer para o bem comum, mesmo vindo de mais baixa condição.
Estou só, muito só, apesar do apoio dedicado e sempre presente de minha mulher,
e também num grande padecimento físico e moral. Só, na realidade, sempre estive
nas horas em que tive de tomar as decisões que permitiram a Portugal resistir, modernizar-se
e engrandecer-se de novo. É sina dos governantes, por mais vozes que ouçam e
prezem, ouvirem somente a sua própria voz no momento em que são chamados a
escolher, a sentenciar, a perdoar ou a punir. Por muito que um homem de Estado seja
dado à partilha de opiniões, a última palavra será sempre a sua, para o melhor
e para o pior, e entre os meus muitos defeitos nunca constou o de me inibir
ante os imperativos da razão de Estado. Ouvi quem tinha de ouvir, dando preferência
àqueles em quem confiava, mas a última voz que a minha consciência ouviu foi
sempre a minha e nenhuma outra». In José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes
Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa,
2012, ISBN 978-989-724-005-8.
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