segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Mal por Mal, antes Pombal. Uma Memória. José Jorge Letria. «Herói? Nunca tal estatuto ou condição reclamei. Fui somente um homem de Estado, um governante dedicado que serviu o seu soberano e a sua Pátria, sem todavia descurar a atenção que sempre deve ser reservada a quem…»

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Mal por mal, antes Pombal, expressão popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele iniciadas.

«(…) Que lhe fosse, entretanto, dada a oportunidade de se defender de todas as acusações e que dessa defesa se fizesse detalhado registo, para constar da memória histórica, à qual nem governantes nem governados se deverão eximir de prestar contas. Que se fizesse igualmente registo de todas as falas e outros testemunhos considerados relevantes para o apuramento da culpa ou da inocência de Sebastião José de Carvalho Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal. Na manhã em que os homens de leis rumaram a Pombal, a rainha experimentou uma rata sensação de alívio, ajoelhou-se e rezou, e, nessa noite, pela primeira vez em meses, não foi atormentada por pesadelos nem viu o pai a debater-se, mirrado e ardente, com as infernais chamas do castigo divino. Aspirava a rainha a ver-se livre de um fantasma ainda vivo, o do marquês, que lhe consumia a alma como se fosse um enviado de Lúcifer para lhe infernizar a vida. Se queria em seu redor uma Corte apaziguada e respeitadora dos preceitos, das regras e das distâncias protocolares, precisava de sentir que Pombal agonizava dia a dia, porquanto o seu sofrimento era o preço do resgate da sua tão almejada paz de espírito. Nas ruas, o povo ainda reclamava a condenação de Pombal, o mesmo que anos antes fizera renascer Lisboa das cinzas e dos escombros da catástrofe, mas nenhuma dessas vozes chegou aos aposentos reais, muito menos aquelas que, em surdina, começavam já a murmurar: Mal por mal, antes Pombal.

Vai declinando a luz no horizonte dos meus dias breves. Sinto que o fim se aproxima pela mão da doença e do cansaço. Que de mim não se espere já alento ou vontade para contrariar este inexorável declínio. Em Lisboa, os meus inimigos, que são muitos, desfraldaram as bandeiras do triunfo depois da minha partida e tudo fizeram para eu ser condenado, de preferência em julgamento público e com sentença capital. Mas eu sei que não se irá tão longe, embora existam outras formas de condenar um homem e de executar, mesmo que não seja necessário fazê-lo subir ao cadafalso. O que de mim se diz talvez não seja o que sobre mim se sente. E há uma voz cá dentro que me acompanha e interroga sempre que as certezas ameaçam não prescrever e as dúvidas se amotinam no meu espírito para me roubarem a paz a que aspiro. Não pode um homem de Estado queixar-se da ingratidão da Pátria ou daqueles que serviu, pois é sentimento que quase nunca existe em relação a quem teve sobre os ombros o peso da governação. Não é o povo que é ingrato; é a memória dos homens que tende a encurtar-se no escrutínio da História quando se trata de deitar contas ao que foi o exercício do poder. Longo, muito longo e tantas vezes árduo foi o caminho que percorri até chegar ao ponto em que hoje me encontro, ao todo vinte e sete anos, revisitando datas, nomes, lugares, feitos e desaires. Que ninguém espere de mim a lamúria ou autocomiseração por qualquer tragédia que me tenha assombrado a vida. Apenas uma me abalou o corpo e a alma, e falo do terramoto que assolou Lisboa em 1755. Foi a prova mais dura que Deus e a vida quiseram pôr-me no caminho, confrontando-me com a magnitude de uma dor colectiva e de uma destruição nunca antes conhecidas pelas gentes da nossa terra. Arregacei as mangas, juntei homens e vontades, cabedais e muita valentia, e ordenei que sobre os escombros nascesse não apenas uma nova capital mas uma nova mentalidade, uma outra maneira de sentir e de pensar Portugal. E eis que a voz interior me pergunta: …terá sido este o melhor caminho, o mais justo, o que não faz de um homem um déspota? E eu contenho-me e calo-me, pois nem as vozes que nos habitam, sejam elas de Deus ou da nossa consciência, merecem outra resposta que não seja a do silêncio que medita e aconselha. A verdade é que parte do meu desígnio foi cumprida; a restante só o tempo o poderá dizer.
Herói? Nunca tal estatuto ou condição reclamei. Fui somente um homem de Estado, um governante dedicado que serviu o seu soberano e a sua Pátria, sem todavia descurar a atenção que sempre deve ser reservada a quem, sediciosamente, tenta lançar por terra, em nome de privilégios e títulos há muito acumulados, o que, esforçadamente, outros conseguiram erguer para o bem comum, mesmo vindo de mais baixa condição. Estou só, muito só, apesar do apoio dedicado e sempre presente de minha mulher, e também num grande padecimento físico e moral. Só, na realidade, sempre estive nas horas em que tive de tomar as decisões que permitiram a Portugal resistir, modernizar-se e engrandecer-se de novo. É sina dos governantes, por mais vozes que ouçam e prezem, ouvirem somente a sua própria voz no momento em que são chamados a escolher, a sentenciar, a perdoar ou a punir. Por muito que um homem de Estado seja dado à partilha de opiniões, a última palavra será sempre a sua, para o melhor e para o pior, e entre os meus muitos defeitos nunca constou o de me inibir ante os imperativos da razão de Estado. Ouvi quem tinha de ouvir, dando preferência àqueles em quem confiava, mas a última voz que a minha consciência ouviu foi sempre a minha e nenhuma outra». In José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.

Cortesia deCAutor/JDACT