A descoberta do mundo pelos Ibéricos
«(…) O plano de Albuquerque estava por isso condenado a fracassar; mas
é necessário reconhecer que a sua política na Índia marcou uma época, uma vez
que foi seguida por governadores, vice-reis e capitães que lhe sucederam até
João de Castro; este governador defendeu, em primeiro lugar, o monopólio do
domínio dos mares, como já atrás disse. Numa carta ao rei João III explicava
que os Portugueses não deviam pensar na ocupação de terras e apresentava como
argumento a falta de apoio dado pelos Guzarates aos Mamelucos, quando
estes cercaram pela primeira vez Diu, em 1538; os Mamelucos traziam cavalos nas suas frotas e os
Hindus pensavam com razão que os cavalos
não são feitos para atacar portos, mas sim para conquistar terras (reproduzo
as palavras de Castro). Contudo, depois das dificuldades com que se debateu
quando do segundo cerco a Diu (Abril-Novembro de 1546), sobretudo no que respeitava à formação de um exército capaz
de vencer as forças inimigas, mudou de opinião e, numa carta escrita ao rei,
afirmou achar que os Portugueses deviam conquistar uma área relativamente
extensa na península indostânica, a fim de darem pequenas parcelas de terra aos
homens que vinham de Portugal e ai instalarem colónias capazes de fornecer um
número suficiente de soldados sempre que se apresentassem situações difíceis,
como aquela que acabava de atravessar.
A mesma ideia foi retomada anos mais tarde por João Mascarenhas,
capitão de Diu-fortaleza quando do segundo cerco. Este homem, que foi
glorificado depois da vitória de Novembro de 1546, pretendia que 10000 portugueses, comandados pelo irmão do
rei, o príncipe Luís,
estivessem à altura de invadir a Índia e, vencendo todos os reis do Indostão,
instalassem definitivamente o poder de Portugal no Oriente. Este plano foi
proposto num documento ainda inédito e foi apresentado precisamente na altura em
que o futuro de Portugal na Índia se mostrava lá bastante sombrio!
Fiz este desvio pela Índia, mas volto de imediato ao meu propósito.
Podemos dizer que, após dez anos de permanência no Oriente, os Portugueses
estavam em condições de prosseguir o descobrimento do mundo oriental. As duas
primeiras tentativas de conquistar Ormuz e Malaca fracassaram. No
entanto, entre 1510 e 1520, os Portugueses conseguiram
penetrar no mar Vermelho, ocupar as duas cidades já citadas, enviar uma
embaixada à China, atingir as Molucas, preparar uma embaixada para enviar ao Preste
João (que fracassou em consequência da morte do embaixador Duarte
Galvão, razão pela qual só visitaram a corte do fabuloso rei depois de 1520)
e enviar navios a Java e outras ilhas produtoras de especiarias, hoje
integradas na Indonésia; aproximadamente vinte anos mais tarde, chegaram ao
Japão. Não falo da Austrália, que Mac Intyre, numa obra recente, pretende
ter sido visitada antes de 1530, uma
vez que as razões em que se baseia esta tese são bastante duvidosas e estão a
ser neste momento objecto de severas críticas.
Para além da documentação que prova estes factos, existem textos
deveras interessantes a respeito de um mundo que a Europa conhecia de uma forma
bastante incompleta, e mesmo incorrecta, através dos escritos que relatam
viagens realizadas no decurso da Idade Média. Deixo de lado os cronistas, cujas
obras, na minha opinião, não foram ainda objecto das análises que exigem. Com
efeito, sabemos que os cronistas foram corrigidos a fim de transmitirem ao
leitor apenas o que era conveniente; os casos de Lopes de Castanheda e
de Damião de Góis são bem conhecidos. Temos o direito de supor que o
cronista pode ter, no decorrer do seu trabalho, o cuidado de ocultar todas as
indicações de factos menos exemplares; e dispomos da contraprova desta tendência
na crónica existente na British Library, publicada há doze anos apenas.
Não se destinava certamente a ser impressa e dá, acerca de alguns factos
ocorridos no início da ocupação portuguesa da Índia, explicações ou
interpretações totalmente diferentes ou mesmo contrárias às de Barros, Castanheda,
Góis e Correia.
No entanto, para além desta literatura por vezes suspeita, existe uma
outra que merece o nosso crédito como testemunho de factos realmente ocorridos.
Não me refiro aos roteiros, embora estes escritos náuticos constituam talvez o
mais rico legado do período dos Descobrimentos; esses escritos, que dão uma
descrição sistemática e objectiva das costas, têm um carácter técnico; quer
dizer que cada geração de pilotos ou marinheiros era levada a prosseguir o
trabalho e a aperfeiçoar os textos; eles tiveram, sem dúvida, a sua origem nos
portulanos mediterrânicos, mas melhoraram-nos e acrescentaram-nos; em duas
décadas cobriam uma extensão de milhares de quilómetros das costas de África,
da Ásia e da América; suponho que, para o conhecimento do descobrimento do
mundo pelos Ibéricos, este corpus de
textos constitui uma recolha preciosa que não foi ainda estudada de uma forma satisfatória
pelos especialistas». In Luís Albuquerque, As Navegações e a sua
Projecção na Ciência e na Cultura, Gradiva, Colecção Construir o Passado, 1987.
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