Portugal. História e Identidade
Os Moçárabes
«(…) Comecemos, pois, por distinguir claramente moçárabes e árabes.
Aqueles conhecem-se pela língua, pois continuam a falar entre si um dialecto
próximo do latim vulgar, com as suas peculiaridades estudadas pelos filólogos,
pela religião, porque continuam a praticar o cristianismo, e pela cultura, pois
os seus clérigos, pelo menos, continuam a preserver muito da superioridade da cultura
latina do fim do Império. À primeira vista não devia restar muito dos moçárabes
no momento da Reconquista, à
data da ocupação de Lisboa (1147) ou à data da conquista do
Algarve (1249). É o que se deve concluir das duras condições em que
viviam, sob o domínio islâmico, pois foram onerados por pesados impostos,
perseguidos, sobretudo nas cidades, por vagas sucessivas de chefes políticos
intolerantes, muito particularmente a partir do império almorávida, relegados
em condições de inferioridade para os meios rurais, como agricultores
dependentes dos vencedores. Não se generalize, portanto, o habitual princípio de
tolerância religiosa muçulmana, que se verificou durante séculos, mas deixou de
ser praticada a partir do fim do seculo XI.
Acrescem a estas circunstâncias desfavoráveis as violências e opressões
dos próprios cristãos que, no momento em que avançaram para sul, submetiam
frequentemente os moçárabes ao cativeiro ou à servidão, confundindo-os com os
muçulmanos. Estes factos históricos, parecem explicar suficientemente o facto
de os vestígios deixados pelos moçárabes na toponímia, na onomástica, na
fonética e nas particularidades lexicais se terem absorvido com rapidez, ao
ponto de deixarem bem poucos vestígios no português actual. Se assim fosse, o
contributo dos moçárabes para a edificação do espírito nacional não podia ter
sido grande. A colonização cultural nortenha tudo teria absorvido rapidamente. Tirando
alguns resíduos ocasionais, até a memória do passado moçárabe se teria perdido
sem remissão. O país, a nação, teria englobado gente do Sul, evidentemente, mas
cultural e institucionalmente seria afinal uma realidade nortenha, cuja pujança
lhe teria permitido absorver o resto do território nacional. - Vejamos tudo
isto mais de perto.
Antes de mais, convém reunir os testemunhos da debilidade da etnia e da
cultura moçárabe. Depois, veremos que a sua resistência não é tão pequena como
isso. Finalmente tentaremos descobrir como puderam subsistir elementos típicos
da sua individualidade através do processo de aculturação que se deu a partir
da segunda metade do século XI e durou pelo menos até ao princípio do século
XIV.
A debilidade étnica e cultural dos moçárabes é inegável. Constantemente
afectados pela conversão ao islamismo, pela emigração para o norte cristão e
pelas perseguições almorávidas e almóadas, só é de admirar como conseguiram, mesmo
assim, subsistir até à Reconquista.
De facto, existem numerosos testemunhos das conversões de cristãos ao
islamismo. Os que o faziam chamavam-se muwalladi.
O seu número era suficientemente grande para darem origem a povoados que
guardaram nos respectivos nomes o vestígio da sua conversão. É o que acontece
com o topónimo Moldes mollites, muwalladi. Sabe-se também que um número
considerável de chefes de taifas no século XI e no século XII eram muwalladi. Embora esta fosse, por assim
dizer, a forma mais benigna de absorção pela civilização islâmica, pois a
conversão religiosa não destruía completamente as tradições culturais
autóctones, não há dúvida que os modelos sociais e culturais adoptados pelos muwalladi eram alheios. E embora não se
possa negar que a civilização andaluza constitua uma síntese a partir de
tradições da Bética romanizada e do mundo árabe (como salienta Sánchez
Albornoz), também não se pode esquecer que o modelo social e cultural oriental
e africano é fundamentalmente diferente do do hispânico, como Pierre Guichard
provou sem sombra de dúvida. Assim, tanto o domínio almorávida como o almóada
contribuíam para restabelecer a dualidade atenuada durante os dois períodos de
reinos taifas que os entremearam e para comprometer as sínteses originadas pelos
muwalladi.
De toda a maneira, e do ponto de vista civilizacional, a própria diferença
entre os modelos oriental e africano e o hispânico dificultou a assimilação não
só dos moçárabes, mas também dos muwalladi.
A fragmentação das taifas e a fitna (revolta)
dos muwalladi mostraram justamente a
capacidade de resistência da etnia hispânica. Muitos dos textos históricos árabes
demonstram os profundos antagonismos existentes entre eles e os árabes e
berberes. Não é, portanto, incorrecto associar moçárabes e muwalladi, apesar das diferenças religiosas. Assim, por exemplo, os
fenómenos linguísticos de que aqui se fala pertencem certamente a ambos.
Provavelmente nunca chegaremos a saber se os camponeses dos arredores das
cidades, que eram certamente ibéricos, se chegaram a converter ao islamismo. Para
os efeitos que aqui nos interessam, porém, esta questão não é muito importante.
Por isso, quando, no resto deste trabalho, falarmos de moçárabes, não queremos,
com isso, excluir os muwalladi».
In José Mattoso, Fragmentos de uma Composição Medieval, Imprensa
Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1987.
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