Maria Magdalena. A antiodisseia da discípula amada
«(…) Notamos algo
interessante nos relatos do evangelista Lucas no capítulo 8 e no evangelista
Marcos no capítulo 16. Marcos, ao narrar o aparecimento de Jesus para Madalena,
acrescenta: Havendo ele ressuscitado de
manhã cedo no primeiro dia da semana, apareceu
primeiro a Maria Madalena, da qual expelira sete demônios. Os dois evangelistas
fazem questão absoluta de reafirmar a condição de ex-endemoninhada de Madalena,
e Marcos o faz de maneira enfática. Por que os dois evangelistas insistiam no passado doentio dessa mulher? Mistérios
[...] Voltando ao capítulo 7 do Evangelho Segundo São Lucas, temos o
relato do episódio da pecadora que ungiu os pés de Jesus. Sobre esta mulher, o evangelista
afirma que era pecadora, que entrou na casa do fariseu sem ser convidada, levando
um vaso de alabastro cheio de unguento. Após quebrá-lo, o que denota
desprendimento das coisas materiais, prostrasse perante Jesus chorando e
regando os pés do Mestre com suas lágrimas, enxugando-os com seus cabelos,
beijando-os e ungindo-os com unguento.
Para a mentalidade
patriarcal daquela época, isso foi um escândalo, a quinta-essência do feminino:
perfumes, lágrimas, choro, cabelos soltos. O texto não esclarece que tipo de
pecado ela havia cometido, mas, como era mulher, logo, pressupôs-se que era uma
adúltera. Cabe esclarecer que, no primeiro século, se uma mulher apenas
conversasse com outro homem que não fosse seu marido, ela já era considerada pecadora.
Em várias outras partes dos Evangelhos, aparecem homens dos quais
são perdoados os pecados, pecados estes que não são especificados, mas, nem por
isso, aqueles são taxados de prostitutos. Essa mulher, que é denominada de pecadora,
que não é nomeada, que ungiu os pés de Jesus, usurpando uma prerrogativa
masculina e sacral, não era Maria Madalena.
Ela não esteve aos pés
de Jesus nessa cena da unção, nem os banhou com lágrimas e óleo, tampouco os
enxugou com seus cabelos. Cabe lembrar que a única cena em que Madalena aparece
aos pés de Jesus é narrada somente pelo evangelista Mateus. Ressaltamos que
esta é a única vez em que Madalena aparece abraçada aos pés de Jesus e que esta
não é a mesma cena da unção, mas ocorre por ocasião da ressurreição, e ela não
está só, está acompanhada por outra mulher. As duas mulheres abraçam os pés de Jesus
e não há menção alguma de cabelos, beijos e perfumes. Em Mateus 28, temos o
relato desta cena: Ao findar do sábado,
ao entrar o primeiro dia da semana, Maria
Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro [...] E eis que Jesus veio
ao encontro delas e disse: Salve! E elas, aproximando-se, abraçaram-lhe os pés e o adoraram.
Os Evangelhos, além
de textos teológicos, não deixam de ser tentativas biográficas da vida de Jesus,
cujas autorias são atribuídas a Lucas, Marcos, Mateus e João e que foram
escritos entre os anos 70 e 90 de nossa era. Não há originais destes Evangelhos
e as cópias mais antigas são os denominados códice Vaticanus e o códice
Sinaiticus. Estes códices, por meio de análises científicas, foram datados
como pertencentes ao século IV e foram encontrados em 1859 no Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai, Egipto,
por Constantino von Tischendorf. Lembramos que as tradições orais
antecederam a escrita dos Evangelhos e provavelmente as narrativas orais
alteraram em muito a história das mulheres que seguiram a Jesus. Fernanda
Camargo-Moro afirma que hoje já se sabe
que os Evangelhos canónicos não são de primeira
mão, isto é, os textos que lemos hoje não nos chegaram sem retoques, ou
acréscimos. Cada um deles é o resultado
de um esforço editorial longo, através das sucessivas camadas de informações e
sua evolução.
A história dessas
mulheres já chegou alterada e foi interpretada, filtrada pelos evangelistas que
eram homens. O facto é que, apesar do androcentrismo dos evangelistas, ainda
existem muitas mulheres nosEvangelhos: Jesus vivia rodeado de
mulheres e concedeu a elas papel relevante no seu ministério, alterando a
estrutura patriarcal vigente na época. Citamos apenas algumas: Madalena,
Maria, irmã de Marta, Joana, Suzana, a mulher cananeia, a Samaritana e dezenas de outras fiéis
seguidoras que foram curadas por ele. Falta aqui mencionar sua mãe, Maria.
O erro de exegese
ocorreu no Sermão proferido na Páscoa do ano 591 pelo papa Gregório, O Grande, que, além de adjectivar a
pecadora de Lucas como prostituta, confundiu-a com Madalena, cuja libertação e
conversão estão narradas na sequência, no capítulo 8 de Lucas. Na realidade, o
papa Gregório anunciou que Maria Madalena, a mulher pecadora, e Maria de
Betânia eram uma só. Nasceu deste erro a ideia de que Madalena fosse uma
prostituta. Esta mulher pecadora de Lucas foi identificada pelo Evangelista
João como Maria de Betânia, irmã de Lázaro (esta identificação não se
efectiva nos outros Evangelhos). Acrescentou-se a isso a imagem da
mulher que quase fora apedrejada por adultério, cujo relato é feito pelo
evangelista João no capítulo 8 e a qual Jesus salvou ao sentenciar para os
escribas e fariseus: aquele que dentre
vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra. Esta mulher
adúltera não é nomeada. Interessante que a primeira e única vez que temos uma
escritura crística, em que Jesus aparece escrevendo, Ele o faz diante de uma
mulher condenada por adultério, portanto, pecadora. O que Ele escreveu, só
ela, uma mulher, leu e mais ninguém no mundo. Cabe aqui uma pergunta: onde estava o homem adúltero? Mistérios!»
In
Salma Ferraz, organização, Maria
Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN
978-85-7628-334-8
Cortesia de Eduem/JDACT