Resumo
«Cruzada São Sebastião do Leblon: uma
etnografia da moradia e do quotidiano dos habitantes de um conjunto
habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro trata de analisar as implicações
sociais, urbanísticas, políticas, económicas e morais da inscrição de uma
população remanescente de assentamentos precários e de baixa renda, sobretudo
proveniente das favelas da Praia do Pinto e da Ilha das Dragas,
no coração chique do espaço residencial e comercial da Zona Sul carioca, entre
a Lagoa Rodrigo de Freitas e as praias de Ipanema e Leblon. A
partir de trabalho de campo realizado nos últimos quatro anos junto aos
moradores dos 10 blocos de apartamentos do conjunto Cruzada São Sebastião do Leblon,
e da consulta ao extenso noticiário jornalístico devotado ao controverso tema
das políticas públicas de remoção ou urbanização das favelas cariocas, a
etnografia procura evidenciar a profundidade dos estereótipos, das categorias
de acusação e de estigmatização com as quais os moradores da Cruzada
se defrontam quotidianamente, ao longo dos últimos 50 anos, experienciando a dura
condição de vizinhança indesejável
diante dos anseios de recém chegados suburbanos atraídos pelo estilo de vida e
pelo gosto estético associado ao morar na Zona
Sul, dos interesses particularíssimos de empresários morais e da sanha de
sequiosos especuladores imobiliários. Além da pesquisa de campo de carácter etnográfico e da análise da extensa
bibliografia académica devotada ao tema, sobretudo aquela produzida a partir
dos anos 1960, recorreu-se ainda ao conjunto de leis e decretos e ao texto de
programas sociais e habitacionais concebidos seja pelo Estado seja por
instituições laicas e religiosas. Por fim, este trabalho procura restituir o
ponto de vista dos actuais moradores da Cruzada sobre si mesmos (suas
histórias de vida, trajectórias e perspectivas). Mas não somente, pois
alcança ainda a visão que compartilham sobre o entorno e seus vizinhos, a
partir da experiência de residirem no emblemático empreendimento associado de
modo incontornável ao nome de Dom Hélder Câmara, idealizador e criador
da Cruzada
e, naquele então, arcebispo-auxiliar do Rio de Janeiro.
Apresentação
Quando decidimos pela realização desta pesquisa, tínhamos em mãos apenas um
endereço. E, com ele, uma lista de questões que passaríamos a frequentar antes
mesmo de nossa primeira ida a campo. Isto porque as coordenadas, como dizem os
franceses, ou seja, um endereço na cidade diz muito a respeito da experiência
urbana que pode ter o seu morador. O nosso ponto de partida foi então este: o
endereço e, com ele, o tipo de experiência que poderia se impor ao citadino, em
especial aquele habitante de uma cidade como o Rio de Janeiro. O lugar escolhido
para a realização deste trabalho era especial. Afinal, tratava-se do testemunho
mais eloquente dos resultados de uma acção política da Igreja Católica iniciada
em 1955 e apoiada pelo governo
federal. A Cruzada São Sebastião, fundada por Hélder
Câmara, na época arcebispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, teve
como propósito urbanizar todas as favelas do então Distrito Federal em dez
anos.
A proposta era não somente dispendiosa, mas ousada, pois fazia face a
política preponderante de erradicação de favelas que durante quase todo o
século XX forçou uma extraordinária diáspora de centenas de milhares de
habitantes da cidade do Rio de Janeiro em direcção às periferias distantes,
mal-servidas em transportes e infraestrutura. Em meio a esta grandiosa operação
que se estendeu ao longo dos anos por intermédio de leis, decretos e políticas
públicas da qual participavam engenheiros, médicos, sanitaristas, políticos,
assistentes sociais e, sobretudo, a polícia, a Cruzada São Sebastião
beneficiaria os moradores das favelas mantendo-os próximos ao local de trabalho
e lazer, ao invés de varrer o pobre para
longe da casa do patrão, como era comum se dizer na época. A única favela
inteiramente agraciada pela urbanização prevista pela Cruzada foi também a
primeira a ser escolhida pelo arcebispo Hélder Câmara. A Praia do Pinto,
situada no Leblon, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, e sua
vizinha, a pequena Ilha das Dragas, seriam extintas após a mudança de seus
moradores dos barracos para os apartamentos dos dez prédios do Bairro São
Sebastião do Leblon, construído em terreno contíguo à favela.
Como o arcebispo Hélder havia antevisto, o Leblon se transformou no
bairro mais valorizado da cidade. Mas, apesar de todos os seus esforços, e do
que esperava como resultado do seu empreendimento, contrariando todas as suas
previsões, as coisas não se passariam exactamente como as concebera. Erradicada
da paisagem chic do entorno da Lagoa
a favela, no entanto, não foi extinta do imaginário urbano, trazendo altos
custos para os moradores do Bairro São Sebastião, hoje conhecido apenas como Cruzada.
Nos quase cinco anos em que venho realizando a pesquisa de campo junto a seus
moradores, pude aprender como o passado da favela se faz presente em seus quotidianos.
Os meios pelos quais os significados do endereço chegam a afectar suas vidas é,
em linhas gerais, o objecto deste trabalho. E para dar conta desse propósito dividi a tese
em quatro partes, cada uma contendo dois capítulos. A primeira parte trata do início da pesquisa de campo
quando, em 2003, por uma feliz
coincidência, os moradores do Leblon encontravam-se empenhados numa
controvérsia, mobilizados que estavam em torno de um acontecimento: a
construção de um moderno shopping center
a ser levantado no bairro, justamente sobre uma pedra contígua aos prédios da Cruzada
São Sebastião. As associações de moradores do Leblon ora questionavam
sobre os impactos ambientais e os transtornos no trânsito; ora sobre a segurança,
o lazer e a possibilidade de emprego. Ninguém ficava indiferente ao assunto. Tivemos,
com isso, uma oportunidade excepcional para conhecermos as diferentes representações
dos habitantes sobre o bairro e consequentemente as fronteiras invisíveis que,
no entanto, demarcavam as muitas diferenças de uso e de status existentes no Leblon.
Em síntese, o momento expressava de forma candente o bairro em suas múltiplas dimensões: como unidade
administrativa de uma cidade e, portanto, circunscrito segundo os critérios do
planeamento urbano; como vizinhança e espaço de uso de seus habitantes; e, por
fim, como uma arena na qual muitos citadinos, diante de uma intervenção
como aquela, se sentiam impelidos a manifestarem-se contra ou a favor,
utilizando, para tanto, inúmeras razões, argumentos, justificativas». In Soraya
Silveira Simões, Cruzada São Sebastião do Leblon. Uma etnografia da moradia e
do quotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de
Janeiro, Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, ICHF,
PPGA, Niterói, Brasil, 2008.
Cortesia de UFF/JDACT