quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal. António Cândido Franco. «A ideia duma dupla consciência, duma segunda instância desconhecida ao pensar do dia-a-dia, uma “consciência inconsciente” para usar a expressão de Freud, interessa-me muito para abordar um livro de ‘Teixeira de Pascoaes’»

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A pintura está demasiado fresca para sobre ela dizer mais; acabei agora mesmo de pousar a broxa e de voltar costas à tela”.

Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«Encontro em Freud, que estou a ler por acaso, um passo que me pode interessar. Está na Autobiografia escrita em1924, numa altura em que a psicanálise já chegara à idade adulta, ou mesmo madura, e em que era fácil ao autor rememorar em sinopse, sem explicações demoradas e sem recurso à descrição pormenorizada de casos empíricos, tão comum na fase inicial, os passos do aparecimento e do primeiro desenvolvimento da teoria psicanalítica. Ao tratar do período relativo à colaboração com Breuer, e o apogeu aconteceu em 1895, ano da edição de Estudos sobre a Histeria, Freud aponta o momento em que formulou a noção de inconsciente psíquico como decisiva para a passagem do método catártico tal como Breuer o praticava a partir da hipnose, libertação dos sintomas patológicos da nevrose através da rememoração verbal deles, ao método analítico. O que aqui me interessa não é o que pode haver de específico neste, quer dizer, a etiologia sexual das nevroses tal como a análise as detectou, mas muito mais o espaço intervalar entre os dois momentos. No intervalo, como ponte de passagem, encontro a teoria do recalcamento, em que conteúdos manifestos, até aí admitidos na consciência vigilante, são expulsos desta, retraindo-se num segundo compartimento, onde permanecem latentes e sem existência aparente. O facto desses novos conteúdos procurarem resistir ao recalcamento, forçando caminho para regressarem às manifestações de superfície, levou Freud a elaborar a ideia duma segunda consciência, interdita à primeira, ao menos de forma aberta e livremente reconhecida, mas não por isso menos viva e actuante. A noção de inconsciente psíquico, crucial ao nascimento da psicanálise, foi deduzida desta ideia duma segunda consciência, onde actuam, vivem e se desenvolvem os conteúdos latentes, desconhecidos da primeira consciência.
Retenho pois a ideia duma segunda consciência, que, existindo com realidade própria, inexorável, é porém um território defeso e desconhecido à primeira, a única que tem lembrança e noção de si, pelo menos como se entende de forma vulgar esta noção de si. A ideia duma dupla consciência, duma segunda instância desconhecida ao pensar do dia-a-dia, uma consciência inconsciente para usar a expressão de Freud, interessa-me muito para abordar um livro de Teixeira de Pascoaes dado a lume em edição magra de autor no ano de 1942, Duplo Passeio. Mas antes de falar do livro de Pascoaes talvez valha a pena dizer que em Platão, citado na Autobiografia de 1924 como o mais antigo elo do trabalho analítico, ou em textos dele, como Fedro, o composto humano resulta da sobreposição de dois planos distintos, que nunca se fundem por inteiro, corpo e alma, o primeiro pertença absoluta da natureza terrestre e o segundo chegado de paragens distantes ou ignoradas. Em Platão estes dois planos, o da alma e o do corpo, aparecem referidos ao mundo das ideias, luminoso e esplêndido, e ao da caverna escura, onde as coisas materiais surgem como apagadas sombras das ideias. Camões glosou em vários passos esta visão duma alma alienígena aprisionada num vaso de argila que não lhe corresponde. Na glosa camoniana a Terra é uma estação que fabrica vestes materiais ao fogo luminoso que receberá, mas vestes desajustadas, já que opacas, à natureza translúcida da essência imaterial. Daí a noção de exílio que a alma vive na Terra junto do corpo, quer dizer, a incomodidade, a estranheza e a dificuldade que ela sente num meio tóxico e corruptível que não é o seu». In António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.

Cortesia de Licorne/JDACT