sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O Príncipe Constante. Pedro Calderón de la Barca. O Infante Santo. Maria Idalina Rodrigues. «O cerne da descrição está, uma vez mais, nas fadigas do cativeiro, entre as quais de somenos não é a fome, mas muito bem marcadas ficam as virtudes do ‘Santo’, assim repetidamente apresenta ele o infante Fernando»

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Com Camões na encruzilhada
«(…) E prossegue o cotejo: um sofreu dois dias, outro seis anos, um para a glória do mundo, outro para a glória de Deus, um com nome nos arcos triunfais, outro com nome no céu. Deste encadeamento, novos e bem logrados testemunhos nos sairão ao caminho lá mais para diante. Entretanto, limitemo-nos a reconhecer um outro curioso contributo de Jerónimo Román: conhecedor das duas anteriores interpretações sobre o traslado dos ossos do Infante, ousadia de um sobrinho do rei de Fez ou intercâmbio combinado com Afonso V, a ambas apresenta para escolha, mas bem evidente nos parece que, para a segunda e mais historicamente comprovada, se encaminha.
Roda o tempo, persiste o martírio do Príncipe no imaginário peninsular, continuam os historiadores a alimentar o culto pelo cativo de Fez. E alguns, como frei Luís de Sousa, com particular brilho, em páginas que ainda hoje lemos com gosto, porque informam e deleitam, aclaram factos e cativam a sensibilidade. Cita o escritor as suas fontes, mas não sem o cuidado de, por vezes, as interrogar, como teremos oportunidade de verificar. Sobre as principais, afirma: Seguimos na vida deste Santo a relação que d’ella escreveu João Alvrez, Cavalleiro da Ordem de Avis que foi seu Secretário, e com elle residio em Fez, reformada depois polo Padre Frei Hieronymo Ramos da Ordem de S. Domingos. Chegando a Lisboa [o corpo] foi depositado no nosso mosteiro de Freiras do Salvador, onde a Cronica del Rey dom Affonso diz que pregou o Prior de S. Domingos (…).
O cerne da descrição está, uma vez mais, nas fadigas do cativeiro, entre as quais de somenos não é a fome, mas muito bem marcadas ficam as virtudes do Santo, assim repetidamente apresenta ele o infante Fernando, pontuadas desde o seu miraculoso nascimento, disponibilidade para obedecer era hum dos que mais …reprovavão a expedição a Tânger, dedicação fora do comum à prática religiosa e às normas fundamentais da vida cristã, caridade, humildade, liberalidade atestadas a cada momento. A paciência no sofrimento merece-lhe a visão da Virgem huma Senhora sobre hum Throno assentada, acompanhada de grande número de Bemaventurados, no meio deles, um que numa das mãos tinha humas balanças penduradas e outro com hum calis, e hum livro aberto, no qual se deixavão ler em letras de ouro as primeira palavras do Evangelho de S. João (.…)
Identificados ficariam, pelos seus símbolos, estes dois acompanhantes de Nossa Senhora; mesmo assim, frei Luís não deixa de reconhecidamente os nomear, com apuro e imaginação, deste modo retomando, para a engrandecer, a aparição que em anteriores escritos havíamos encontrado. Entre os milagres, distingue-se a cura do cego mouro, mas rápida alusão se faz também a muitos outros, sobretudo de restabelecimento de enfermos. Santo, e como tal, por todos venerado, era, pois, este Infante que por Deus se resignava a tantos e tão fortes sofrimentos; como santo seria recebido na bem-aventurança, após a morte e o seu corpo teria jus a especial e magnificente sepultura. Não descuremos, porém, quatro curiosas observações. 

A primeira tem a ver com a semelhança com Régulo e com os Décios, inicialmente aduzida para que possa concluir-se, depois de contados os respectivos feitos, pela supremacia de um príncipe que se entrega aos enemigos da fé por salvar os seus que vê perdidos.
A segunda decorre da exaltação de um comportamento de quem sempre esteve contra a entrega de Ceuta, não hesitando o autor em afirmar que, à resolução das cortes, obrigou o voto do mesmo infante, que, como verdadeiro Catholico, e amigo da sua pátria, advertio em segredo a el-Rei que tratasse do maior bem da Espanha, e mais honra de Portugal, antes que da vida de hum só homem.
A terceira prende-se com uma precisão relativamente à principal fonte: há quem admita que, só a partir de 1441, começaram os tormentos, seriam as duas fases do cativeiro, de acordo com o conteúdo de uma carta que se mostra no Convento da Batalha escrita polo Infante.
A quarta e última reporta-se à trasladação final e à diversidade de opiniões sobre como decorreu nos meios, e modos por quem foi trazido há variedade entre os escritores, concordando todos na certeza da vinda».

In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.

Cortesia de Via Spiritus/JDACT