Os sábios henriquinos e a escola de Sagres
«(…) Nada disto oferece qualquer dúvida. Creio, porém, que deve ser tomada
à conta de balela uma historieta que se impingia, com a melhor boa fé (diga-se)
nas escolas primárias do meu tempo de criança, parafraseando, por vezes com um
pouco de imaginação, o seguinte passo escrito por uma autoridade de peso, como é considerado o cronista João de Barros: mas os navios, que daquela vez e de outras
foram, em tempo do infante, e vieram, não descobriram mais que até o cabo
Bojador […]. Porque como este cabo começa de incurvar a terra de mui longe, e
ao respeito da costa, […] lança e boja para oeste perto de quarenta léguas (onde
deste muito bojar lhe chamaram Bojador...); tal nome teria sido posto por
Gil Eanes, segundo o mesmo Barros: … o
qual nome lhe ele [Eanes] pôs pelas razões que atrás dissemos (Década I,
capítulo IV). O que não é verdade: Bojador não tem nada a ver com bojar; é aportuguesamento do nome que o
cabo tinha no século XIV Buyetder e outras formas aparentadas, como a
cartografia mostra.
Passar o cabo não seria considerada uma empresa difícil; árduo era o
regresso ao continente europeu de navios que se encontravam numa área marítima
em que ventos e correntes contrariavam por via de regra tal retorno por uma
rota directa e costeira. Azurara não terá compreendido o alcance da
viagem de volta de Eanes; tão-pouco a entendeu João de Barros, que concorda
com Azurara ou o utiliza, mas exagerando um pouco o que ele escreveu,
quando afirma: e posto que a obra desta
passagem [do Cabo Bojador] não foi
grande em si, […] então lhe foi contada por um grande feito, e houveram que era
igual a um dos trabalhos de Hércules [...].
Foi por vencer essa dificuldade, a partir do exemplo de Gil Eanes, que
marinheiros posteriores vieram a perder de todo o receio de se engolfar no
oceano; com uma consequência do maior significado: o reconhecimento da
necessidade de alterar a arte de navegação, introduzindo nela práticas
astronómicas (observação de alturas meridianas de estrelas, e logo a seguir
determinações das latitudes geográficas do lugar dia a dia ocupado pelo navio),
que constituíram os primeiros mas decisivos passos da transformação dessa arte
numa técnica.
E eis que, para explicar esta alteração, ou com o pretexto dela, se introduz
capciosamente um novo mito na história das navegações portuguesas. Segundo
uma lenda que em torno da sua figura se enredou, o infante Henrique, como
infante avisado, soube prever tudo a tal respeito, embora haja quem de tal não
esteja convencido, por admitir, e com as razões de uma lógica transparente, que
o infante decerto nada conhecia dos regimes de ventos e correntes existentes em
mares para sul do cabo Bojador, e só com poderes divinatórios, que decerto não
teve, saberia que os seus marinheiros encontrariam a solução de os contornar e
lançariam mão da astronomia mais elementar, para se não perderem no mar imenso.
Mas isso, dizem os defensores do endeusamento do infante Henrique, é o que pensam as pessoas simples ou
de fraco entendimento, grupo em que serei decerto incluído; eles, os de forte
entendimento, vêm as navegações dos séculos XV e XVI à medida dos grandes
feitos tecnológicos do nosso tempo, ou seja, com estudos prévios até à menor
das minúcias, para serem mínimas as probabilidades de fracasso. Quem assim
pensa não tem qualquer dificuldade em visionar o infante empenhado, primeiro em
construir um observatório em Sagres, e depois, ou simultaneamente (tanto
faz), em reunir à sua volta um punhado de sábios de grande nomeada.
Vamos por partes, a
começar pelo fantástico observatório, o
primeiro que houve em Portugal, segundo escreveu o erudito Beasley:
mas não foi só Beasley: muitos historiadores que se ocuparam do infante referiram
a construção do célebre observatório, e a ideia estendeu-se no tempo até os nossos
dias, passando de autor em autor sem qualquer reparo, porque nunca houve o
mínimo cuidado em saber em que dados ela se baseia.
Ainda não há muito, um jovem historiador alemão, Ulrich Knefelkamp,
ao fazer um resumo analítico da lenda medieval do Preste João, em um dos últimos
capítulos do seu estudo tropeça no observatório henriquino lamentavelmente,
porque a partir daí logo surgem ao leitor dúvidas quanto à fidedignidade das
informações que anteriormente nos transmitiu, e nos pareciam um bom apanhado
sobre o tema de que no livro se ocupa. Eis o que escreveu: as condições iniciais para as navegações dos Portugueses têm sido para
uns a tomada de Ceuta levada a bom termo (1415)
e para outros a edificação de uma academia de navegadores com um observatório em
Sagres [….]. Assim, ele [o infante] fez construir em Sagres majestosos edifícios,
nos quais reuniu muitas informações e homens capazes, a fim de preparar
cuidadosamente o seu projecto. É claro, creio, a opção do autor para a
segunda alternativa, a de observatório e sábias informações.
Ora um observatório astronómico, em tempos do infante, é desde logo uma
ideia suspeita; mas admitindo que o infante Henrique tivesse assim esbanjado o
seu dinheiro (ou o dinheiro da Ordem de Cristo), para que lhe servia tal observatório?
Não é verdade que todas as regras da futura navegação astronómica, com excepção
do regimento das léguas (este aliás
adaptado da raxon ou toleta de marteloio), andavam de
há muito em tratados do astrolábio ou
do quadrante?»
In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos
Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990,
ISBN-972-699-258-3.
Cortesia de Vega/JDACT