«(…) No dia 13 de
Janeiro de 1729, o monarca João
V visitou incógnito, em companhia do físico-mor, os cárceres da Inquisição (maldita) de Évora. Entrou pela porta secreta
do alcaide dos cárceres, assistiu ao interrogatório de um feiticeiro, examinou
os cárceres de vigia, entrou na sala do despacho, olhou das janelas o palácio
do arcebispo e penetrou depois, à luz das velas, na sala do secreto. A 6 de Fevereiro, no seu
regresso da fronteira, o rei visitou de novo os cárceres e na sala da tortura
um dos guardas sujeitou-se simuladamente aos tratos de polé e às correias do
potro. Não faltaram conflitos a minar o entendimento entre as quatro grandes
instituições que marcavam a vida da cidade: a Sé, a Universidade,
a Inquisição (maldita) e o
Concelho. A Inquisição (maldita) e a
Sé estavam frente a frente. O Concelho tinha a sua sede num dos extremos da
Praça Grande ou Praça do Giraldo onde se desenrolavam os autos da fé. A
Universidade marcava um espaço junto da antiga alcáçova.
Na coexistência nem
sempre pacífica dos poderes, os arcebispos furtavam-se a ir ao auto da fé por questões
de preeminência. Queriam uma cadeira especial que os inquisidores,
administradores do acto, negavam. Mas a ligação à Sé era orgânica: quase
todos os inquisidores acumulavam o seu cargo com os de cónego da Sé e muitos
deles subiram às mitras, designadamente à mitra de Évora, considerada nos
meados do século XVIII mais rendosa que a Sé de Braga e a segunda das Hespanhas.
Também não faltaram questões com a Universidade que disponibilizava os seus
doutores para a pregação nos autos da fé e para o acompanhamento final dos
presos. As questões eram ainda de preeminência. Quem devia abastecer-se
primeiro de carne no mercado: os
criados dos inquisidores ou os da Universidade? Num conflito célebre
entre a Universidade e a Inquisição (maldita),
deflagrado em 1643, João IV decidiu
contra a Universidade, possuidora de antigos privilégios e partidária da Restauração,
e a favor da Inquisição (maldita) que
contra ele conspirava e prendera o padre jesuíta Francisco Pinheiro, lente de
Teologia.
A tensão entre a
Inquisição (maldita) e a cidade explodiu
algumas vezes em violência. Um dos momentos de maior tensão viveu-se na última
década do século XVI quando os inquisidores prenderam boa parte dos mercadores
eborenses da Praça Grande. Para escárnio das famílias, penduravam-se na igreja
de S. Antão as efígies dos condenados à morte. Mas os inquisidores queixavam-se
que alguém as destruía pela calada ao mesmo tempo que os cristãos-novos se
recusavam a ser fregueses de S. Antão. Numa sociedade mortificada por
escrúpulos de consciência, sempre desconfiada dos seus pensamentos e dos
pensamentos e das práticas dos vizinhos, o tribunal alimentava-se quase exclusivamente
da denúncia. E toda a sua actividade interna consistia em fabricar denúncias, verdadeiras
e falsas, usando as longas prisões sem culpa formada, as ciladas, a coacção
psicológica, a tortura. O momento mais alto era o do auto da fé anual, a Testa que por vezes se prolongava
pelo dia inteiro e onde eram reconciliados
ou garrotados e queimados os hereges relapsos e negativos, quase sempre
cristãos-novos.
O lugar de deputado e de
inquisidor abria as portas do verdadeiro cursus
honorum que desembocava nas mais altas prebendas da Igreja e do Estado:
conezias, mitras, reitorados da Universidade, Conselho de Estado (por
inerência, o membro do Conselho Geral tornava-se membro do Conselho de Estado),
Mesa da Consciência e Ordens. Pelos quadros da Inquisição (maldita) de Évora passaram doutores e mestres
em teologia, doutores, licenciados e bacharéis em direito canónico ou em ambos os
direitos. Entre eles, o teólogo dominicano frei Jerónimo Azambuja que
participou no Concílio de Trento, e Marcos Teixeira, cónego doutoral da Sé de
Évora, futuro bispo do Brasil que comandou a reconquista da Baía tomada pelos
holandeses em 1624.
O chamado distrito onde
a Inquisição (maldita) de Évora exercia a
sua actividade abarcava todo o sul do Tejo com excepção da península do
Setúbal. Nos seus primórdios recebeu presos de Trás-os-Montes e da Beira. As
cidades e vilas mais castigadas foram Beja, Évora, Elvas, Montemor-o-Novo,
Campo Maior, Arraiolos, Viçosa, Estremoz, Serpa, Faro. Os períodos de maior
rigor ocorreram nos governos de Filipe II e IV e após a morte de João IV. E só
depois do governo do marquês de Pombal, o pedreiro livre substitui o
cristão-novo. Entre as vítimas conta-se o desembargador e humanista Gil Vaz
Bugalho, cristão-velho, amigo de linguistas de origem hebraica, doutos no
latim, no hebraico e no caldeu, tradutor para linguagem dalguns livros do Velho
Testamento e queimado em 1551. Frei
António Abrunhosa, franciscano natural de Serpa, parte de cristão-novo e
cristão no coração, assistiu à prisão da mãe, das irmãs e sofreu ele próprio a
perseguição dos seus conventuais e do Santo Oficio (maldito).
Manuel Casco Farelais, aluno
da Universidade e fidalgo cristão-novo, enviou da prisão um Padre Nosso em
verso antes de ser queimado em 1629.
Em 1613 um cristão-novo denunciava
alentejanos que judaizavam em Hamburgo e Amesterdão. Entre eles contavam-se o
licenciado Francisco Rosa, dos Rosas de Beja, Manuel Gomes de Évora (Jacob
Abenatar), Álvaro de Castro, dos Namias de Beja, Melchior Mendes de Elvas
(Abraão Franco), Nuno Bocarro (Jacob Pardo), dos Bocarros de Beja, e
outros. Os fugitivos diminuíam as forças de Portugal e alimentavam as da
Holanda e doutros países do Norte. António Costa Lobo, um dos cidadãos mais
ricos de Beja, onze anos preso sem culpa formada e queimado em 1629, afirmava que o Santo Ofício (maldito) era um tribunal do diabo. Que os
inquisidores vinham da Beira julgar as consciências alheias e, em vez de as
salvarem, as metiam no inferno.
Durante quase três
séculos muitos dos homens mais poderosos das cidades e das vilas a Sul do Tejo passaram
pelos cárceres e sofreram o confisco dos seus bens. De tal modo que, já em 1630, o inquisidor-geral Fernando Castro
escrevia que se o reino estava menos rico em compensação estava mais católico.
Mas no fim das contas, sem somar o sofrimento e a humilhação, sem contar a desonra das gerações, nas palavras de
frei António Abrunhosa, podemos afirmar que o Alentejo e o Algarve ficaram
menos católicos e mais pobres».
In
António Borges Coelho, A Inquisição de
Évora, Jornal Alentejo Popular, Beja, Outubro, 2006.
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