«(…) O amor da verdade e
da justiça predominava de tal modo em Herculano que seria capaz de sacrificar-lhe
todos os outros affectos do seu coração; elle punha a verdade acima de tudo.
Herculano nunca teve em mira sacrificar a sua consciência ao serviço de
qualquer seita ou partido; no seu rigoroso espirito a paixão pela verdade estava
acima da religião e do patriotismo. A grande imparcialidade com que Herculano
apreciava não só os papas mas também aquelles homens a quem a igreja canonizou,
mostra-nos evidentemente que o espirito catholico não suffocou nelle a paixão
mais nobre do verdadeiro historiador, o amor da verdade. O seguinte trecho do
segundo volume da Historia de Portugal é uma prova da veracidade da minha
asserção: ao passo que um homem de génio,
Innocencio III, se assentava no solio pontifício para manter a acção da jerarchia
sacerdotal, surgiam da obscuridade outros dous homens que haviam de hasteiar de
novo a bandeira da abnegação e fazer abraçar pelos seus sectários a rigorosa
pobreza repellida das congregações monásticas, instituindo em frente d'ellas as
congregações mendicantes. Ninguém ignora os nomes d'estes dous indivíduos, Francisco
de Assis e Domingos de Gusmão, aquelle, humilde mas abastado burguês italiano
que, depois de convertido ao mysticismo, seguia com tanto ardor a vereda da
mortificação como antes seguira a espaçosa estrada dos deleites; este, nobre e
altivo hespanhol, já revestido de dignidades ecclesiasticas e que se arrojara á
grande empreza da reforma sem perder os caracteres da sua raça. Austero e
inflexível, homem cujos avós pelejaram sempre contra os sarracenos com o ferro
numa das mãos e o facho do incêndio na outra, dir-se-hia que mal sabe combater
de diverso modo os que não crêem como elle. A sua exaltação religiosa é intolerante:
a luz suave do Evangelho não pôde vê-la senão reflexa na espada polida, senão
retincta em sangue. O gemido do hereje no patíbulo é para elle um hymno ao
manso cordeiro do Calvário: para elle o algoz exerce um sacerdócio.
Neste eloquentíssimo
parallelo, um dos mais concisos, enérgicos e claros de todas as litteraturas,
mostranos Herculano a profunda differença que houve entre os fundadores das
duas ordens dos franciscanos e dominicanos. O fanatismo do terrível S. Domingos
de Gusmão foi por elle estigmatizado num estylo vigorosamente poético; o facto
da igreja ter posto este homem feroz; cruel e sanguinário no número dos
santos não impediu Herculano de pintá-lo com toda a fidelidade. É de
admirar que, referindo-se o eminente historiador a estes dois vultos da igreja,
não fizesse a mais leve menção do santo mais popular para os portugueses, de
Santo António, que não só pertenceu á ordem franciscana mas também viveu no
reinado de Affonso II e cuja gloria o clero português quasi que olvidou durante
séculos deixando-o envolto na lenda milagreira e chegando apenas a occupar-se
dos seus escriptos e a enaltecer a sua influencia social quando pretendeu fazer
manifestações reaccionárias e jesuíticas.
Estou profundamente convicto de que, se o grave historiador, apesar de
ser eminentemente christão e patriota, não se occupou do referido santo, é
porque, relativamente a esta gloria nacional, não encontrou nos cartórios que tão
activamente revolveu documentos que satisfizessem o seu espirito extremamente
severo e rigoroso. Aquelle grande philosopho, a quem Theophilo Braga
chama catholico ferrenho, punha sempre o amor da verdade acima do próprio
catholicismo. Até no modo de considerar a religião christã se revela a poderosa
autonomia da sua vasta e profunda intelligencia. Com que energia não combateu Herculano
as ambições clericaes, a politica da igreja! O catholicismo, que elle apreciava
não só poeticamente mas também debaixo do aspecto prático, não o impediu de
tirar conclusões, como pretende o auctor da Historia do romantismo. O
espirito de Herculano era ainda mais positivo do que o de alguns
positivistas que se deixam seduzir pelas miragens da sua imaginação e muitas
vezes da imaginação alheia». In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano,
Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15
de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma,
556544, 14.1.53.
Cortesia de LTavares Cardoso & Irmão/JDACT