segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «No subtítulo o leitor é logo avisado que o problema apenas é tratado para os tempos do “infante e de João II”; embora tal não seja estritamente cumprido, há sem dúvida limitações na abordagem do tema»

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Ainda o Segredo de Estado
«Segundo uma breve nota, tirada de um comentário publicado há trinta anos, e que nunca foi posta em causa, a ideia de segredo ou sigilismo de estado passou de mera hipótese de explicação, posta pelo cardeal Saraiva, a tese fundamental na grelha explicativa dos Descobrimentos portugueses, proposta por Jaime Cortesão. E como tem a seu favor a capacidade, tão agradável aos amantes de novidades capitosas, de dar pintura de aparência agradável a loas que, na sua forma crua, seriam facilmente contestadas, a sua aceitação tem sido muito mais ampla do que merece. O mais antigo documento dedicado por Jaime Cortesão ao tema data, se não erro, de 1924, e saiu na revista Lusitânia. O autor retomou depois o assunto diversas vezes, partindo sempre do que antes dissera, mas enroupando o seu discurso de novas observações e de novos argumentos.
No âmbito destas notas não é possível acompanhar toda essa evolução definida através de uma série de número elevado de textos saídos do punho de um homem inteligente e sagaz, historiador a quem devemos belíssimas páginas, mas que em tal matéria se deixou de tal modo envolver pelo mito que acabou por não reconhecer a fronteira do credível, passando com facilidade ao domínio do puro devaneio. Pela impossibilidade apontada limitar-me-ei a recorrer ao livro da Colecção Henriquina, intitulado precisamente A Política do Sigilo nos Descobrimentos, de 1960. No subtítulo o leitor é logo avisado que o problema apenas é tratado para os tempos do infante e de João II;
embora tal não seja estritamente cumprido, há sem dúvida limitações na abordagem do tema; em compensação, no entanto, pode-se ter quase a certeza de que se espelham no escrito as últimas e mais trabalhadas peças da tese sigilista de Jaime Cortesão, pois o livro veio a lume no ano da sua morte, e terá sido, porventura, o último ensaio que saiu completo da mesa de trabalho.
Tão-pouco poderei seguir uma por uma as 167 páginas deste livrinho, para apontar nelas tudo o que parece excessivo ou passível de concorrência com outras explicações paralelas, tanto ou mais válidas que as radicadas numa apertada teoria de segredo. Esse trabalho total exigiria algumas (muitas) dezenas de páginas, afinal inúteis; e inúteis porque nunca me propus desmantelar de modo total o fantasma do sigilismo, antes tem sido minha preocupação mostrar, através de exemplos, que ele não passa de uma explicação fácil e frágil, usada para iluminar pequenos problemas da história dos Descobrimentos que se encontram na sombra. Se conseguir esse objectivo, de futuro o leitor estará de sobreaviso para novas situações em que apareça o mesmo tipo de esclarecimento para arrumar de uma penada dificuldades, em relação às quais valerá decerto a pena ensaiar outras vias de justificação.

Esse capítulo, em que se estuda O Segredo das Cartas de Marear, dos Roteiros, do Valor do Grau, dos Regimentos e das Coordenadas, inicia-se com a seguinte frase: Se o Infante Henrique e os dirigentes portugueses que se lhe seguiram proibiram a venda de caravelas ao estrangeiro, mandava a lógica que se opusessem igualmente à saída de capitães, pilotos, cosmógrafos […] e com eles dos roteiros para as novas terras, das cartas de marear e de tudo que ensinasse a nova ciência da posição e da direcção do navio e, mais que tudo, da do Sol ao meio-dia. Tenho como dado indiscutível que a caravela, ou para ser mais exacto: as caravelas, pois se conheceram vários tipos delas nos séculos XV e XVI, como expressamente afirma Fernando Oliveira, tenho por assente, serem as caravelas os navios que melhor se adaptaram a viagens de reconhecimento; mas concordo com Francisco Contente Domingues quando ele escreveu que este tipo de navio não representou uma verdadeira revolução tecnológica.
Sem reforçar esta opinião, reconheço ser facto apurado (e a favor da tese do sigilo) que o rei Afonso V, em 1471, castigou severamente Pero Roiz (perda de todos os bens móveis e de raiz) por vender uma caravela no reino de Aragão, informando o rei que tinha promulgado uma disposição sobre o assunto. Valeria a pena averiguar como foi aplicado o castigo e que tipo de pessoa era o prevaricador. A este exemplo junta Cortesão o de Vicente Dias Rebolim, pescador de Lisboa, castigado por desatino semelhante em 1473. Estes dois casos são perfeitamente claros, e mostram ou parecem mostrar que o monarca se preocupava em resguardar a divulgação na Europa de navios desse tipo. Mas também mostram, que a despeito das severas penas previstas, esses navios se vendiam fora do país; nos dois casos referidos os prevaricadores foram apanhados, mas quantos não teriam passado pelas malhas da fiscalização? E, sendo assim, de que serviam as medidas secretistas, para além de talvez atenuarem um pouco o contrabando?

Cortesão cita um terceiro caso: o do valenciano James Timer, mestre de açúcar da Madeira, autorizado pelo Príncipe Perfeito para, associado com portugueses, adquirir qualquer navio de gávea que não fosse caravela; neste caso a limitação pode não ter sido tomada pela mesma intenção cautelar (um mestre de açúcar da Madeira devia estar farto de ver caravelas!), mas não custa aceitá-lo como exemplo favorável ao sigilismo».

In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT