Ainda o Segredo de Estado
«Segundo uma breve nota, tirada de um comentário publicado há trinta
anos, e que nunca foi posta em causa, a ideia de segredo ou sigilismo de
estado passou de mera hipótese de explicação,
posta pelo cardeal Saraiva, a tese fundamental na grelha explicativa dos Descobrimentos portugueses, proposta por Jaime
Cortesão. E como tem a seu favor a capacidade, tão agradável aos amantes de
novidades capitosas, de dar pintura de aparência agradável a loas que, na sua
forma crua, seriam facilmente contestadas, a sua aceitação tem sido muito mais
ampla do que merece. O mais antigo documento dedicado por Jaime Cortesão
ao tema data, se não erro, de 1924,
e saiu na revista Lusitânia. O
autor retomou depois o assunto diversas vezes, partindo sempre do que antes
dissera, mas enroupando o seu
discurso de novas observações e de novos argumentos.
No âmbito destas notas não é possível acompanhar toda essa evolução definida
através de uma série de número elevado de textos saídos do punho de um homem
inteligente e sagaz, historiador a quem devemos belíssimas páginas, mas que em
tal matéria se deixou de tal modo envolver pelo mito que acabou por não
reconhecer a fronteira do credível, passando com facilidade ao domínio do puro
devaneio. Pela impossibilidade apontada limitar-me-ei a recorrer ao livro da Colecção
Henriquina, intitulado precisamente A Política do Sigilo nos Descobrimentos,
de 1960. No subtítulo o leitor é
logo avisado que o problema apenas é tratado para os tempos do infante e de João II;
embora tal não seja estritamente cumprido, há sem dúvida limitações na abordagem
do tema; em compensação, no entanto, pode-se ter quase a certeza de que se
espelham no escrito as últimas e mais trabalhadas peças da tese sigilista de Jaime
Cortesão, pois o livro veio a lume no ano da sua morte, e terá sido,
porventura, o último ensaio que saiu completo da mesa de trabalho.
Tão-pouco poderei seguir uma por uma as 167 páginas deste livrinho, para
apontar nelas tudo o que parece excessivo ou passível de concorrência com
outras explicações paralelas, tanto ou mais válidas que as radicadas numa
apertada teoria de segredo. Esse
trabalho total exigiria algumas (muitas) dezenas de páginas, afinal
inúteis; e inúteis porque nunca me propus desmantelar de modo total o fantasma
do sigilismo, antes tem sido minha
preocupação mostrar, através de exemplos, que ele não passa de uma explicação fácil e frágil, usada para iluminar
pequenos problemas da história dos Descobrimentos que se encontram na sombra.
Se conseguir esse objectivo, de futuro o leitor estará de sobreaviso para novas
situações em que apareça o mesmo tipo de esclarecimento
para arrumar de uma penada dificuldades,
em relação às quais valerá decerto a pena ensaiar outras vias de justificação.
Esse capítulo, em que se estuda O
Segredo das Cartas de Marear, dos Roteiros, do Valor do Grau, dos Regimentos e
das Coordenadas, inicia-se com a seguinte frase: Se o Infante Henrique e os dirigentes portugueses que se lhe
seguiram proibiram a venda de caravelas ao estrangeiro, mandava a lógica que se
opusessem igualmente à saída de capitães, pilotos, cosmógrafos […] e com eles
dos roteiros para as novas terras, das cartas de marear e de tudo que ensinasse
a nova ciência da posição e da direcção do navio e, mais que tudo, da do Sol ao
meio-dia. Tenho como dado indiscutível que a caravela, ou para ser mais exacto: as caravelas, pois se conheceram vários tipos delas nos séculos XV
e XVI, como expressamente afirma Fernando Oliveira, tenho por assente, serem
as caravelas os navios que melhor se adaptaram a viagens de reconhecimento; mas
concordo com Francisco Contente Domingues quando ele escreveu que este
tipo de navio não representou uma verdadeira revolução tecnológica.
Sem reforçar esta opinião, reconheço ser facto apurado (e a favor da tese do sigilo) que o rei Afonso
V, em 1471, castigou severamente Pero
Roiz (perda de todos os bens móveis e de raiz) por vender uma caravela
no reino de Aragão, informando o rei que tinha promulgado uma disposição sobre
o assunto. Valeria a pena averiguar como foi aplicado o castigo e que tipo de
pessoa era o prevaricador. A este exemplo junta Cortesão o de Vicente
Dias Rebolim, pescador de Lisboa, castigado por desatino semelhante em 1473. Estes dois casos são
perfeitamente claros, e mostram ou parecem mostrar que o monarca se preocupava
em resguardar a divulgação na Europa de navios desse tipo. Mas também mostram, que a despeito das severas penas previstas,
esses navios se vendiam fora do país; nos dois casos referidos os
prevaricadores foram apanhados, mas quantos não teriam passado pelas malhas da fiscalização? E, sendo assim, de que
serviam as medidas secretistas, para
além de talvez atenuarem um pouco o
contrabando?
Cortesão cita um terceiro caso: o do valenciano James Timer,
mestre de açúcar da Madeira, autorizado pelo Príncipe Perfeito para,
associado com portugueses, adquirir qualquer
navio de gávea que não fosse caravela; neste caso a limitação pode não ter
sido tomada pela mesma intenção cautelar (um mestre de açúcar da Madeira
devia estar farto de ver caravelas!), mas não custa aceitá-lo como exemplo
favorável ao sigilismo».
In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos
Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990,
ISBN-972-699-258-3.
Cortesia de Vega/JDACT