segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «Numa palavra: o segredo sobre a caravela já de facto não existiria quando o incluíram como preceito legal nas ordenações manuelinas! Deve ter sido incluído nelas por mera rotina jurídica…»

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Ainda o Segredo de Estado
«(…) No entanto, o autor referencia ainda uma carta de Fernando Aragão pedindo ao rei Manuel I três caravelas (em 1504), que lhe foram vendidas; e depois, com outros intervenientes nas transacções, o Venturoso vendeu mais duas caravelas em 1510 e outras duas em 1512. Manuel I levantava, portanto, mão do segredo; e isso, por incrível que pareça, apesar da venda de caravelas a estrangeiros aparecer proibida nas ordenações manuelinas! Nem chegarei a perguntar se não houve sempre alguém capaz de fazer um bom negócio mesmo quando a lei lho veda. Admitamos por comodidade esta coisa falsa: os portugueses desse tempo procediam todos, e sem exceptuar os ligados aos meios marítimos, com um irrepreensível respeito pelas leis e pelas disposições reais; pelos vistos, só as não cumpria o rei, o que me parece no mínimo estranho, para não dizer anacrónico!
Todavia, para além do mau exemplo do monarca, ao largar o segredo da mão, não podemos esquecer o facto de navios portugueses, e entre eles seguramente caravelas, terem sido frequentes vezes apresados por castelhanos ao largo da costa da Guiné antes de 1479, ou seja, antes das vendas referidas por Cortesão. E essas caravelas podiam ser vistas, analisadas, medidas e estudadas, e dar lugar a cópias ou réplicas, coisas que estavam ao fácil alcance de qualquer bom construtor de navios. Numa palavra: o segredo sobre a caravela já de facto não existiria quando o incluíram como preceito legal nas ordenações manuelinas! Deve ter sido incluído nelas por mera rotina jurídica…
E é neste ponto que entra em jogo um tipo de raciocínio quase silogístico que é pau para toda a obra na tese do segredo de estado: se havia secretismo quanto às caravelas, logo não tinham licença para sair do reino de Portugal capitães de navios, pilotos, cosmógrafos e cartógrafos, encarnação viva da marinha e da ciência náutica portuguesa, que nas caravelas se praticava. Jaime Cortesão reconhece, porém, serem parcos os testemunhos directos sobre os meios com que o Estado se opôs à saída de pilotos para o estrangeiro durante o século XV. Por mim não conheço um único a que tal fosse proibido, e Jaime Cortesão não devia saber mais do que eu, porque ao referir casos concretos cita seis pilotos (eventualmente acumulando esse ofício com o de capitães) e três cartógrafos (de modo um tanto abusivo dados também como cosmógrafos) mas todos do século XVI, e sendo alguns até de segunda metade desta centúria. Ora no tempo em que Bartolomeu Velho foi para França (1567), para propor ao rei galês um rol de dispositivos náuticos sem o mínimo valor prático, a arte de navegar e a cartografia portuguesa eram lá conhecidas há muito, como o eram em Espanha, em Itália, em Inglaterra e na Alemanha.

Rebuscando-se uma cronica de Garcia de Resende encontra-se a história de um piloto e dois marinheiros fugidos para Castela com dinheiro da Mina furtado, que João II conseguiu fazer prender, para em seguida mandar esquartejar o primeiro e decapitar os outros dois. A história é recordada por Jaime Cortesão, que se não lembrou de perguntar porque motivo se considerava o monarca desservido dos três marítimos; dá a entender que as profissões dos prisioneiros ditaram as sentenças, mas o cronista acusa-os de ladrões, crime bem grave no tempo (e ainda mais grave por ter sido cometido na Mina). Para o autor da teoria de sigilo aquele procedimento penal fundamentava-se em qualquer desconhecida lei que definia o crime e estabelecia a pena; é verdade que existiam leis em relação a crimes de furto, mas não conhecemos alguma a respeito de fugas de informações. Quando o cartógrafo Jorge Reinel se transferiu para Sevilha e começou a exercer aqui a sua actividade, Manuel I não mandou esbirros que o trouxessem forçadamente para Lisboa, como naquele caso terá acontecido; mandou-lhe o pai, Pedro Reinel, também cartógrafo, que lá conseguiu persuadir o fugitivo a voltar aos ares pátrios, não sem antes ter colaborado com ele em trabalhos cartográficos para os meios náuticos sevilhanos; e, ainda por cima, os trabalhos de Jorge Reinel estiveram muito provavelmente relacionados com a viagem de Fernão de Magalhães, que tantos dissabores deu a Manuel I e, sobretudo, ao filho João III. Pois, apesar disso, o Piedoso deu-lhe uma tença de 10 000 réis!
É verdade,  e Jaime Cortesão lembra-o, que Manuel I procurou reter ao serviço do Reino homens sabedores do mar, ameaçando-os, através de um diploma, que caso tentassem expatriar-se lhes confiscaria os bens e os degradaria para a ilha de Santa Helena; não chega, no entanto, à ameaça de pena de morte, e explica a determinação não pelo desejo de manter segredo mas pela necessidade que nesse momento deles tinha: em nossos reinos têm bem em que ganhar suas vidas; não era por isso razoável, no entender do monarca, que exercessem a sua arte fora do Reino, por termos tanta necessidade deles (confessa Manuel I). Quantos se não terão escapado antes desta disposição (e só isso a explica) e quantos se não terão escapulido depois dela!

Todavia, o grande cavalo de batalha da teoria do sigilo é a inexistência de roteiros, de livros de bordo, de relações de escrivães e de cartas de marear, anteriores a 1470. Ora quanto aos três primeiros textos náuticos indicados não temos a menor suspeita de que tenham circulado mesmo secretamente até àquela data; é possível que sim, mas gastaram-se nas mãos dos que deles se serviam, não sendo estranho que nem um tivesse chegado aos nossos dias. O mesmo aconteceu, de resto, com as cartas de marear: todas ou quase todas as que conhecemos, de esmerado acabamento e bem iluminadas, constituem exemplares que se ofereceram a pessoas importantes da época, ou que alguém endinheirado encomendou e pagou em Lisboa a cartógrafo de renome; das cartas que poderíamos dizer de trabalho não há traço; e digo-o com uma certeza: a de nunca ter encontrado nelas qualquer indicação de pontas de compassos, que eram usados para marcar quer o ponto de fantasia quer o ponto de esquadria; aliás não se pode aceitar que um planisfério alguma vez fosse usado na prática da navegação, o que exclui logo desse uso muitas das cartas conhecidas». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, Colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT