sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «Como te vejo pálido e tremente! Sofrerás, por acaso? Descobriu alguma nova dor teu coração? Trazes contigo o assombro de quem viu milagre ou maravilha! Andas possesso da tua própria alma a delirar?...»

Henrique Medina e jdact

Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
II
Marânus e a Pastora
E Marânus, tão triste, empalidece:

Quem sabe se tu és, ó criatura,
um espectro mais próximo e visível?
Uma sombra mais densa e mais escura?

Quiméricos desenhos fabulosos
serão as tuas formas virginais?
E esse teu lindo rosto florescido,
como a terra, em Abril, não será mais
do que uma branda névoa enganadora
que, por minha virtude, cristaliza
nessa tua aparência, que esta aurora
coroa de áureas rosas?

E a Donzela,
confusa, imaginando que Marânus
o juízo perdera, de repente,
assim lhe diz, tomada de piedade:

Como te vejo pálido e tremente!
Sofrerás, por acaso? Descobriu
alguma nova dor teu coração?
Trazes contigo o assombro de quem viu
milagre ou maravilha! Andas possesso
da tua própria alma a delirar?...
Não haver quem te arranque das entranhas
essa noite que turva o teu olhar,
esse íntimo demónio tenebroso!

Oh, que estranhas palavras! Quem és tu?
Lhe perguntou Marânus. - Logo vi.
Que eras pura ilusão dos meus sentidos.
Mas também que me importa, se eu vivi
essa ilusão? Se tudo quanto vivo
se converte em humana realidade,
fica a ser deste mundo, como eu sou.

E, num sorriso etéreo de bondade,
a solitária e idílica Pastora,
que misterioso espírito animava,
talvez o duma Deusa que, em seu corpo,
suas divinas formas revelava:

Caminhante nocturno, erma figura,
gerada no silêncio e na tristeza…
Ó luso peregrino da Aventura,
atrai-me a tua voz enlouquecida!
O teu próprio delírio me seduz...
Essa altitude, anímica e nevoenta,
que toca nas estrelas, onde a luz,
para voar, voar, se veste de asas.

Há nas tuas palavras um abismo.
Ouvindo-as, logo sinto uma vertigem,
e, em sobressalto, chora e se lastima
o que em mim é vedado, oculto e virgem.
A parte indefinida do meu ser
ama a sombra espectral em que desvairas...
E nem, ao menos, posso compreender
esta força amorosa que me leva
para a tua loucura!

Desconheces
se eu existo, se vivo, e confundiste
a carne palpitante, que me acende
os ossos de desejo, com a triste
irrealidade escura dos fantasmas.

Já não me avisto a mim! Eis o motivo
por que te adoro tanto! E quem sou eu?
Alguma deusa? Espectro fugitivo?

Mas eu existo e sou! Sou eu! Repara
no sangue do meu pulso que lateja!
Não vês o meu olhar beijar teus olhos?
Não vês a minha sombra como beija
a sombra do teu corpo?

Dizes bem.
Fica longe de nós todo esse idílio.
É um idílio de sombras, muito além,
nas distantes florestas.
E, inclinando
a alva fronte, a Pastora emudeceu.
[…]

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT