«O ensaio pretende apontar algumas
características basilares da obra poética do autor português contemporâneo António
Ramos Rosa. Entende que o poeta é um perspicaz intérprete da
multiplicidade estética de seu tempo e que, portanto, compõe com recursos
variados. Rosa manipularia, com desenvoltura técnica, a simplicidade, a
fluidez, o corte, oposições e tensões; a deferência à palavra surgiria em seus
versos como conciliadora de distintos panoramas da modernidade.
Em
Poesia e Desordem, livro de nome bastante propício para tratar da poesia
dos últimos tempos e suas ramificações formais, Antonio Carlos Secchin escreve
que Muitas trilhas foram abertas em busca
da poesia, e até contra ela, através de sucessivas decretações de morte, mas
ela, sempre renascida em constantes metamorfoses, não parece incomodar-se com
isso. Apesar de essas linhas se incumbirem basicamente da literatura
brasileira, é possível afirmar que a arte poética do século passado atravessou
inúmeros e inusitados laboratórios formais, mais ou menos animosos, em variados
países que comparticipam de certa maneira da mesma cultura literária. De tal
modo, a poesia portuguesa de António Ramos Rosa realiza-se sobre-eminente.
Das trilhas abertas, há aqueles que optam por uma e logo pensam ter descoberto
o improvável atalho ao fastígio. Muitos, ainda, se dedicam mais a defender o
seu rumo do que a enfrentar seus obstáculos, ou mesmo procuram recuar, negando
a existência de qualquer via possível. Entretanto, outros, conseguem usufruir a
visão de paisagens diversas, porque seguem ascendidos, e mais exitosos se
tornam a cada destino alcançado. Nessa selva oscura, ou seja, em nossa
desordenada modernidade, os versos de Ramos Rosa se apresentam como
aqueles que adquirem, como numa selecção rigorosa, um entremeado dos melhores
resultados provenientes dos inúmeros caminhos opostos, de tantas colisões
teóricas, tantas des- e re- construções da poesia. E podemos dizer que
somente um escritor que conseguiu compreender com bastante argúcia a sua época
seria agente desse efeito.
Penso numa linguagem
desconcertantemente simples, falsamente transparente, um pouco tosca. Térrea e
pétrea.
In
Ramos Rosa, 1970.
A falsa antítese planejada, entre a simplicidade e a densidade,
sendo a última revestida astuciosamente da outra e, para além, a caracterização
da forma, podem servir-nos como dica à principal peça do mosaico poético de Rosa:
a deferência à palavra. Idealizada ao
longo da modernidade como o elemento literário maior, cuja forma deva
possivelmente confundir cenário e roteiro, meio e fim, signo e referente, ela
não deixa de adquirir em nosso poeta o valor que os modernos pretenderam. Sem
se adulterar como quem abre trilhas presumidamente prodigiosas, a palavra em António
Ramos Rosa inventa com naturalidade; acrescenta, alheia a maneirismos,
à poesia de seu tempo e serve preferencialmente ao leitor:
Na justa monotonia do
meio-dia
oiço o prodígio do
repouso e a paixão adormecida.
O concêntrico sopro
imobiliza-se. É uma lâmpada
de pedra fulgurante.
Tudo é nítido mas ausente.
O mundo todo cabe no
olvido e o olvido é transparência
de um denso torso que
a nostalgia acende.
(1991)
O silêncio
morno das coisas do meio-dia, como já se referiu Vinicius de Moraes,
é aqui susceptível, podemos dizer, a leituras com variadas categorias de
absorção, em não sendo antagónico o diálogo simplicidade / densidade, mas
complementar, os versos detém o atributo de suspender o leitor independente do
nível de atenção que ele queira ou lhes possa prestar. A palavra se afigura,
pois, capaz em última instância de se enunciar legitimamente mesmo quando
reflexionada distante do significado que lhe foi próprio». In Daniel Gil, Ramos
Rosa. Funcionário Incansável das Palavras, Vértices,
Campos dos Goytacazes/RJ, volume 12, n.º 2, Brasil, 2010, Wikipedia.
Cortesia de Vértices/JDACT