sábado, 28 de setembro de 2013

Ramos Rosa. Funcionário Incansável das Palavras. Daniel Gil. «Na justa monotonia do meio-dia oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida. O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente»

Cortesia de wikipedia

«O ensaio pretende apontar algumas características basilares da obra poética do autor português contemporâneo António Ramos Rosa. Entende que o poeta é um perspicaz intérprete da multiplicidade estética de seu tempo e que, portanto, compõe com recursos variados. Rosa manipularia, com desenvoltura técnica, a simplicidade, a fluidez, o corte, oposições e tensões; a deferência à palavra surgiria em seus versos como conciliadora de distintos panoramas da modernidade.

Em Poesia e Desordem, livro de nome bastante propício para tratar da poesia dos últimos tempos e suas ramificações formais, Antonio Carlos Secchin escreve que Muitas trilhas foram abertas em busca da poesia, e até contra ela, através de sucessivas decretações de morte, mas ela, sempre renascida em constantes metamorfoses, não parece incomodar-se com isso. Apesar de essas linhas se incumbirem basicamente da literatura brasileira, é possível afirmar que a arte poética do século passado atravessou inúmeros e inusitados laboratórios formais, mais ou menos animosos, em variados países que comparticipam de certa maneira da mesma cultura literária. De tal modo, a poesia portuguesa de António Ramos Rosa realiza-se sobre-eminente. Das trilhas abertas, há aqueles que optam por uma e logo pensam ter descoberto o improvável atalho ao fastígio. Muitos, ainda, se dedicam mais a defender o seu rumo do que a enfrentar seus obstáculos, ou mesmo procuram recuar, negando a existência de qualquer via possível. Entretanto, outros, conseguem usufruir a visão de paisagens diversas, porque seguem ascendidos, e mais exitosos se tornam a cada destino alcançado. Nessa selva oscura, ou seja, em nossa desordenada modernidade, os versos de Ramos Rosa se apresentam como aqueles que adquirem, como numa selecção rigorosa, um entremeado dos melhores resultados provenientes dos inúmeros caminhos opostos, de tantas colisões teóricas, tantas des- e re- construções da poesia. E podemos dizer que somente um escritor que conseguiu compreender com bastante argúcia a sua época seria agente desse efeito.

Penso numa linguagem desconcertantemente simples, falsamente transparente, um pouco tosca. Térrea e pétrea. In Ramos Rosa, 1970.

A falsa antítese planejada, entre a simplicidade e a densidade, sendo a última revestida astuciosamente da outra e, para além, a caracterização da forma, podem servir-nos como dica à principal peça do mosaico poético de Rosa: a deferência à palavra. Idealizada ao longo da modernidade como o elemento literário maior, cuja forma deva possivelmente confundir cenário e roteiro, meio e fim, signo e referente, ela não deixa de adquirir em nosso poeta o valor que os modernos pretenderam. Sem se adulterar como quem abre trilhas presumidamente prodigiosas, a palavra em António Ramos Rosa inventa com naturalidade; acrescenta, alheia a maneirismos, à poesia de seu tempo e serve preferencialmente ao leitor:

Na justa monotonia do meio-dia
oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida.
O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada
de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente.
O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência
de um denso torso que a nostalgia acende.
(1991)

O silêncio morno das coisas do meio-dia, como já se referiu Vinicius de Moraes, é aqui susceptível, podemos dizer, a leituras com variadas categorias de absorção, em não sendo antagónico o diálogo simplicidade / densidade, mas complementar, os versos detém o atributo de suspender o leitor independente do nível de atenção que ele queira ou lhes possa prestar. A palavra se afigura, pois, capaz em última instância de se enunciar legitimamente mesmo quando reflexionada distante do significado que lhe foi próprio». In Daniel Gil, Ramos Rosa. Funcionário Incansável das Palavras, Vértices, Campos dos Goytacazes/RJ, volume 12, n.º 2, Brasil, 2010, Wikipedia.

Cortesia de Vértices/JDACT