Introdução
«(…) O manuscrito que agora se publica coloca, pelo seu mau estado,
sérias dificuldades e manifestas impossibilidades de leitura, particularmente
quanto aos primeiros 14 capítulos da Segunda Parte. Na transcrição, aproximámo-nos
dos critérios apontados por Vitorino Magalhães Godinho para as edições diplomático-críticas
(Revista de História Económica e Social).
Esclareça-se, contudo, que, na medida do possível, procurámos colmatar essas
lacunas com o texto dos capítulos das Décadas. Trabalhámos sobre cópia
obtida a partir do microfilme, mas cotejámos as dúvidas que nos surgiram com o
próprio microfilme. Procurando favorecer a leitura, sem retirar ao texto o seu sentido cultural e o seu sabor arcaico, adoptaram-se as seguintes
opções: desdobraram-se as abreviaturas; suprimiram-se as iniciais maiúsculas nos
nomes comuns e em simples elementos, de ligação gramatical, mas mantiveram-se,
ou tomaram-se em todos os nomes próprios.
Quanto ao conteúdo, o autor define concretamente no longo título, o objectivo
que a si mesmo se propôs tratar os feitos de Vasco da Gama e de seus filhos no Oriente.
A primeira parre da obra constitui uma crónica
dos sucessos obtidos por Vasco da Gama nas três vezes que passou à Índia e em
especial durante a primeira. É que, segundo Couto, talvez pela grandeza e temeridade da viagem do descobrimento, tal feito
passou a figurar mais como couza que passou
la na outra vida e não tanto como empreendimento realizado há relativamente
pouco tempo sob o comando de um mortal, precisamente o bisavô de Francisco
Gama. Logo, se louva a diligência deste, não deixa de, frontalmente, como era
faceta característica da sua personalidade (leia-se, também, o relato
biográfico de couto, da autoria de Manuel Severim Faria) criticar a incúria
dos outros descendentes do primeiro conde da Vidigueira e almirante do Mar
Indico, por não perpetuarem convenientemente a sua memória. Enfim, sem
confundirmos a finalidade do Tratado com
o objecto do mesmo, pensamos poder afirmar que o registo dos feitos dos filhos
de Vasco da Gama na Índia apenas amplia
ou robustece as maravilhosas couzas, e os
raros e espantosos socessos que o valeroso
capitão realizou.
Repare-se, com efeito, como o espaço da actuação do herói (por ser para
os ocidentais, designadamente para os portugueses, um espaço incógnito e tão
distante, a última das terras) é
elemento decisivo na avaliação dos feitos que realiza no âmbito das descobertas
e das conquistas, a ponto de, por sugestão de João de Barros, Diogo do Couto
insistir que ao nome de Vasco da Gama se deveria associar o epíteto de o Índico,
à semelhança de Cornélio Cipião, o
Africano, ou Jacob, o Ismaelita. Justificá-lo-ia a proeza de ter alcançado
a incógnita e distante Índia, mas
sobretudo o facto de ela não ter ficado isolada
no pensamento real e imaginário dos ocidentais, nem o seu interesse por ela se
ter circunscrito a uma mera fruição à escala local e regional. O que a indústria e o esforço dos homens (europeus)
sobremaneira proporcionaram, através do feito extraordinário da descoberta do
Gama, foi tornar comonicaveis o Gange com
o Tejo, o Eufrates cõ o Minho, o Nilo cõ o Douro, o Tigre cõ o Gadiana,
ajuntando o primeyro ponto do naçimto do sol, cõ o uhimo fin de seu ponte.
Eis, pois, o Oriente ligado, por interesses vários e com carácter sistemático,
ao Ocidente, precisamente através do pequeno Portugal, situado na parte mais
ocidental e, por isso mesmo, no dizer de Camões, cabeça da Europa.
Que sabia esta Europa de matéria
de cosmografia? Que (além do mais) a terra já não era plana, mas esférica; que havia antípodas, apesar de
parecer ser anti-natural; que estas e outras desmitificações se vinham
processando graças ao esforço teórico e experimental dos europeus, mas também (e
é esta a nota forte do discurso de Couto), porque no-las manifestou [e voltamos a citar a sua
epístola a Francisco da Gama] aclarou e descobrio o nosso valerozo capirão dom
Vasco da Gama». In Diogo do Couto, Tratado dos Feitos de Vasco da Gama e de seus filhos
na Índia, organização de José Azevedo Silva e João Marinho Santos, Universidade
de Coimbra, Faculdade de Letras, Edições Cosmos, Porto, 1998, ISBN
972-762-081-7.
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