A instituição. O espaço
«(…) Évora. Sobranceiros ao Paço do Arcebispo e à Sé, erguiam-se, a
norte, os muros do Santo Ofício Velho; a poente, os do Santo Ofício Novo. Os
cárceres do Ofício Velho vinham morrer nas paredes do então açougue que ocupava
o chão, cegava as colunas do templo romano. Mantém-se uma parte do espaço do
Santo Ofício Velho, profundamente reorganizado nos séculos XIX e XX. No piso
superior, abre-se ainda uma sala de despacho com as armas da Inquisição
(maldita) no tecto apainelado. Nos meados deste século, obras efectuadas na rua
pública a poente do templo romano puseram à vista o esqueleto de antigas celas,
esqueleto que o pudor do Poder fez desaparecer sem deixar rasto.
O Santo Ofício Novo, que no portal em pedra conserva um bem talhado
brasão inquisitorial, ocupou, ao que parece, em duas fases, casas do Paço do conde
da Vidigueira. Em carta de l0 de Outubro de 1600, dirigida ao Conselho Geral, os inquisidores doutor Gaspar Pereira
e Salvador Teles Meneses propõem a compra de casas contíguas ao Santo Ofício (maldito). O proprietário vendera já algumas
casas. Agora vendia outras muito boas. E
se hão-de dar em preço de trezentos mil réis, e menos, pela necessidade que tem
quem as vende. Que é um bom preço. São foreiras fatiotas à Sé [...], cada um
ano três cruzados e quatro galinhas. E porque nesta inquisição há ao presente
dinheiro bastante de hábitos que se tiraram e de outras condenações [...]. Nas
casas a poente do Santo Ofício Velho, estão ainda de pé alguns cárceres, que
julgamos de penitência, com o claustro de abóbada nervada que lhes dava acesso.
Este pátio e claustro comunicam para um alpendre decorado com frescos de
animais fantásticos. E no tecto da capela que se abre ao fundo, são visíveis as
armas do conde da Vidigueira.
O problema do espaço em Évora afligia os inquisidores. Em Maio de 1591 Martim
Gonçalves da Câmara, membro do conselho Geral e visitador da Inquisição (maldita) de Évora, escrevia ao cardeal Alberto,
então inquisidor-geral: e por não estarem
as casas em que pousou o inquisidor Pêro Olivença de modo que se possam
acomodar a cárcere do Santo ofício e eu tenho informação que de se recolherem
nelas alguns presos os anos passados sucederam as conjurações de Beja e outros
muitos inconvenientes por se não poder vedar a comunicação dos presos [...],
trato de despejar o cárcere com se passarem a esta Inquisição de Lisboa cincoenta
ou sessenta presos. A 3 de Abril de 1593, ordenava o Conselho Geral que o padre frei João faça a traça da obra dos paços. O espaço
interior parece ter sido bastante remexido como pode ver-se pela carta de 19-8-1608,
assinada pelos inquisidores Salvador Teles Meneses e Miguel Pereira: Na varanda do cárcere novo deste santo
ofício da banda de nascente, chove, por entrar a água pelos vãos dos arcos, e
alaga as portas das casas dos presos daquele corredor por ficar o ladrilho da
varanda mais alto, da banda de fora dos arcos, para onde ela há-de correr, do
que fica da banda de dentro, ao redor das casas que é causa de a água represar
aí e não correr.
Todo o recinto da cidadela está marcado pelos passos da Inquisição (maldita). Autos-da-fé se celebraram à porta da
igreja de S. João Evangelista, do outro lado do açougue / templo romano; e no
pátio do Santo Ofício Velho; e no terreiro da Inquisição (maldita) com
cadafalso encostado ao varandão do paço do cardeal Infante; e no largo
fronteiro ao portal da Sé. Nos meados do século XVI, em pleno governo
henriquino, à porta da Sé se dependuravam as feiticeiras: espantalhos humanos
vivos, as carochas de escárnio na cabeça, diabos mordendo sobre a roupa
burlesca. Desde as oito horas da manhã de domingo até que se acabe a missa maior, aí ficavam em cima de uma escada, descalças
e em corpo, com rótulos no peito manifestando os seus delitos, uma corda em volta do pescoço a apertá-las como se aperta
e prende o próprio demónio com quem elas manteriam pacto secreto de sangue
quando não conversação carnal. Mas as passadas do Santo Ofício (maldito) saíam da cidadela. Pela Rua da
Selaria desciam à Praça (Praça Grande ou Praça do Giraldo) onde se montava o
cadafalso e se acendiam as fogueiras. Espaço de sacrifício. Sacrifícios animais
outrora no sagrado do templo romano. Sacrifícios profanos no açougue.
Sacrifícios humanos nos cárceres e nas fogueiras dos autos-da-fé». In
António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1,
Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da
Leitura, 1987.
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