sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. «A partir destes textos encontramos um acumular dos vários tipos de relações “pessoais” que se podem estabelecer entre Maria Madalena e as outras personagens com quem se cruza»

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1ª. tentativa de roubo do Noli me tangere, (con)fusão de Marias
 (…) Também o Discurso XX de Cirilo de Jerusalém faz esta (con)fusão. Encontra-se uma versão semelhante no ciclo de peças de York, The Wynedrawers, e estará decerto na origem das curiosas divagações do autor do nosso Flos Sanctorum de 1513: devemos crer que apareceu a sua mãe Santa Maria, embora não o achássemos escrito (...) e ainda que não o contem os evangelistas. Mas devemos crer que lhe apareceu depois da Ressurreição porque não achámos que nenhum evangelista dissesse em que lugar, nem quando lhe apareceu. Mas não queira Deus que tal desonra ele fizesse a sua mãe: mas não falariam disso os evangelistas, porque era seu ofício trazer testemunhos da ressurreição.
Nas lendas do século IX, como a do Pseudo-Rábano Mauro, não existem ainda inquietações deste tipo: vendo-se ela apenas favorecida com a primeira e mais privilegiada das suas aparições, como sendo entre todas as mulheres (com excepção da Virgem Mãe de Deus) a mais ternamente amada, a mais adorada e a mais querida, não podia fazer outra coisa do que exercer o apostolado com o qual ela tinha sido honrada. Esta rasura do Noli me tangere vai tornar-se peremptória a partir do século XVI. E a autoridade posteriormente invocada para tal é Inácio de Loiola (1491-1556) que, nos seus Exercícios Espirituais (1538), dedica um capítulo ao tema: sobre a Ressurreição de Cristo Nosso Senhor, a sua primeira Aparição, Primeiro Ponto onde diz: primeiro: Ele apareceu à Virgem Maria. Isto, embora não seja dito na escritura, está incluído no dito que Ele apareceu a tantos outros, porque a Escritura supõe que compreendamos como está escrito, estás tu também sem entendimento.
Este primeiro ponto primeiro irá preocupar a maioria dos pregadores portugueses de setecentos, não deixando, entretanto, de ser corrigido pelos pintores. A última versão nacional do Noli me tangere encontrada é a de Francisco Henriques, com a data de 1513. Um alto-relevo do círculo de João de Ruão, de 1550-1560, retábulo da Capela de Soure, Coimbra resolve o problema atribuindo ao Ressuscitado o dom da ubiquidade, e fazendo-o aparecer a Madalena e à Mãe em simultâneo.

O riso de Maria na Última Ceia e a exclusão das mulheres da eucaristia
Idêntica fortuna literária vai ter uma cena narrada nos Agrapha. Os Agrapha ou Ditos de Cristo, talvez conservados pela tradição oral, mas transcritos pelos padres da Igreja, aparecem como apêndice aos Evangelhos. Esta cena irá ser utilizada por João para excluir as mulheres da celebração eucarística. Dizem os textos grego e latino: Esqueceram-se, irmãos, quando o professor pediu pelo pão e pelo cálice, e os abençoou, dizendo: Isto é o meu corpo e o meu sangue, que ele não permitiu a estas mulheres que ficassem connosco. Marta disse: foi por causa de Maria, porque a viu sorrir. Maria disse: não me tinha rido ainda (ou mais): porque ele nos tinha dito antes. O que é fraco será salvo por meio do que é forte. O siríaco diz: não me ri na verdade, mas recordei as palavras de Nosso Senhor e fiquei contente: porque sabem que ele nos tinha dito quando nos ensinou, etc.. E ainda: falando de Maria, disse Marta que a havia visto sorrir-se. Maria respondeu: não me ri, pois Jesus anunciou na sua prédica que o fraco seria salvo pelo forte.
Para além de outras alusões de menor importância (embora retomadas por alguma literatura patrística), salienta-se apenas o insinuar de uma certa agressividade de Marta para com a superioridade de Maria, ressentimento natural por esta ter escolhido a melhor parte, num empolgamento da sequência evangélica, que irá ser atribuída a João para justificar a ausência das mulheres na Última Ceia e excluí-las da celebração da missa. A partir destes textos encontramos um acumular dos vários tipos de relações pessoais que se podem estabelecer entre Maria Madalena e as outras personagens com quem se cruza. Pelo distanciamento que se vai instalando entre Madalena e essas mesmas personagens, começa a esboçar-se um relacionamento privado de eleição com Cristo. Este estatuto de eleição ainda incipiente, que a distingue e distância dos outros apóstolos, suscita neles o ciúme ou a agressividade, inscritos nas figuras de Pedro e Judas. Também por ele se instaura o conflito entre Marta e Madalena.
Nos Evangelhos Apócrifos o estatuto de apóstola de Madalena é identificado com o de mensageira, relativamente a Maria, anunciando-lhe a paixão do filho, e a Tibério, comunicando-lhe a morte de Jesus. Caso raro nestes textos, não aparece aqui relacionada com o episódio da Ressurreição. Por sua vez, é agora o acto da unção que passa para segundo plano, embora se marque na sequência da compra do vaso dos óleos, erotizado pela referência à circuncisão e antecipando-lhe o papel de figura feminina complementar do Salvador que se evidenciará nos textos gnósticos. Todavia, aqui Madalena é ainda uma personagem do romance de Cristo, embora se esboce já a extrapolação evangélica do muito amor que vai alimentar a tradição de um relacionamento mais profundo com Jesus. Paradoxalmente, esta mais íntima ligação com a personagem de Cristo vai proporcionar-lhe, simultaneamente, uma maior autonomia». In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT