segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Amor e Sexualidade no Ocidente. Pequena História. Georges Duby. «Tal juízo depreciativo sobre os profissionais ao serviço do amor livre não impedia que tal serviço fosse mantido na maior estima, enquanto actividade humana, e que lhe fosse atribuída uma prerrogativa essencial, a que chamaríamos cultura requintada»

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Tudo começa na Babilónia
Tabus...
«(…) Os próprios deuses não escapavam a tais desventuras. No mito sumério, o deus Enlil espreita a jovem deusa Ninlil, deita-se sobre ela, viola-a e engravida-a, de tal forma que os outros deuses, revoltados com este mau comportamento, acabam por o banir que não o impede de recomeçar! Inanna, a filha do deus An, deixa-se violentar pelo jardineiro do seu pai e, segundo um outro mito sumério, aquando da sua transposição para acádico, é ela quem o solicita desavergonhadamente e em termos bastante claros, transformando-o em rã devido à sua resistência. Na célebre Epopeia de Gilgamesh, em língua acádica, a mesma deusa oferece-se, igualmente sem vergonha, ao herói que regressa gloriosamente da sua expedição à Floresta dos Cedros; mas este consegue resistir a cair nas mãos da desavergonhada, atira-lhe à cara a lista dos numerosos amantes que ela abandonara e maltratara, depois de os ter amado.

O amor livre
Uma tal situação explica que, ao lado do amor subjugado às necessidades da sociedade, existiu espaço para o que apelidei de amor livre, praticado livremente por cada um e para seu próprio prazer. Para que não trouxesse prejuízo a ninguém, estava assegurado por especialistas que exerciam aquilo a que chamamos a prostituição. Em face dos gostos e das maneiras de ver daquele tempo e daquele país, segundo os quais o amor não era forçosamente heterossexual, os que estavam ao serviço do amor livre eram profissionais de ambos os sexos. Contudo, contrariamente ao que se passa na nossa cultura, existem fortes probabilidades de o seu ofício ter sido colorido por um toque de religiosidade. Não só tomavam parte, em tal qualidade, nas cerimónias litúrgicas, particularmente em certos santuários, como lhes foi concedida, como protectora e modelo, a deusa Inanna, em língua suméria, ou Ishtar, em acádico, a mais conhecida do panteão,onde lhe havia sido atribuído o título de Hieródula: prostituta sobrenatural. Por tudo isto, já se pode ter uma ideia das concessões que tal função lhes permitia...
A julgar pelas múltiplas denominações que conhecemos mas que, na sua maioria, não nos dizem muito mais, prostitutas e prostitutos aparecem-nos divididos em diversas categorias ou corporações, faltando assim os meios para podermos perceber diferenças e especializações. A julgar pela sua designação (ishtarianas), uma de entre elas poderia estar ligada mais directamente à pessoa de Ishtar e outra (consagradas), em contacto mais directo com o mundo religioso. Entre os homens, alguns deviam ser não simplesmente invertidos mas travesti, alguns, nada foi inventado!, usavam mesmo nomes de mulher a acreditar num surpreendente texto oracular, podendo fingir de esposas e mesmo parturientes...
Aparentemente, estes celebrantes do amor livre eram numerosos, sobretudo em redor de certos templos. O bom Hérodoto enganou-se: surpreendido por ver tantas criaturas a oferecer os seus serviços em hasta pública, acreditou que se tratava de uma atitude de obrigação de todas as mulheres do país, movidas por um costume desonroso, de se entregarem pelo menos uma vez na sua vida... Mas eles eram tratados como marginais, ficando relegados à fronteira do espaço socializado das cidades, nas suas muralhas, e pareciam não estar nada protegidos contra os maus tratos, humilhações e desprezos. Um mito em sumério sugere-nos a razão: em suma, cada um tinha fracassado o seu destino específico, as mulheres, de ter tido um só esposo a quem dessem filhos, e os homens, de desempenhar no amor o papel masculino.
Tal juízo depreciativo sobre os profissionais ao serviço do amor livre não impedia que tal serviço fosse mantido na maior estima, enquanto actividade humana, e que lhe fosse atribuída uma prerrogativa essencial, a que chamaríamos cultura requintada. Um outro mito em sumério explica-nos isso, sem quaisquer rodeios. É na história de Enkidu, o futuro amigo e companheiro de Gilgamesh, no início da Epopeia, em acádico, que tem exactamente o nome deste herói. Nascido e criado nas estepes, com os animais selvagens como únicos representantes da sociedade, espécie de força bruta e de belo animal, descobriu o amor verdadeiro, não animalesco, mas com uma mulher real, experimentada e lasciva, graças a uma prostituta que lhe haviam enviado para o amansar:

Ela deixou cair o lenço / e descobriu a sua vulva para que ele pudesse experimentar o prazer. / Ardentemente, ela beijou-o na boca (tomou-lhe a respiração) / E afastou-lhe a roupa. / Quando ele se estendeu sobre ela, / Pôde mostrar a esse selvagem / O que pode fazer uma mulher. / Enquanto, com os seus afagos, ele a acariciava.

Após seis dias e sete noites de intimidade, completamente subjugado por aquela feiticeira, Gilgamesh sentiu-se pronto para a seguir para todo o lado. Então, ela fê-lo deixar a sua estepe natal e os seus companheiros, que, aliás, já haviam fugido, e levou-o até à cidade, onde, graças a ela, ele se torna um homem, um homem no seu sentido pleno, cultivado e civilizado. Foi o amor livre que, a partir da natureza, o introduziu na cultura. Que melhor forma de acentuar até que ponto se avaliava um dos privilégios do apogeu da civilização do que esta possibilidade de exercer livremente e em plenitude, se necessário com a ajuda de especialistas, as nossas capacidades amorosas natas?»

In Georges Duby, Jean Bottéro, Amour et Sexualité on Occident, Société d’Éditions Scientifiques, Paris, 1991, Amor e Sexualidade no Ocidente, Terramar, Lisboa, 1998, ISBN 972-710-053-8.

Cortesia de Terramar/JDACT