Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
«(…) Sem darmos mais exemplos, que seriam naturalmente repetitivos, podemos
concluir que a cartografia portuguesa do século XVI, quando enriquecida com
desenhos polícromos, procurava frequentemente transmitir as realidades diferentes
com que, através do mundo légua a légua reconhecido, os navegadores e os
viajantes iam tomando contacto. Essa visão de novas realidades converge para
homens de costumes diferentes, animais até então desconhecidos e plantas
exóticas; também em cenas que pelo seu movimento ou por inesperadas feriam a
atenção do europeu; e ainda por mitos, uns herdados, outros criados, que só
muito mais tarde foram erradicados do imaginário do homem europeu, e quase
sempre para dar lugar a outros mitos!
Quer dizer, a cartografia portuguesa corresponde e até vai além da
síntese que Pedro Nunes faz das consequências das viagens ditas de
descobrimento, na seguinte frase muitas vezes citada do seu Tratado...
em defensam da Carta de marear...: Os
portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entrarã por elle sem nenhü receo.
Descobriram nouas ilhas / nouas tenas / nouos pouos: [...].
O cosmógrafo-mor não falou na nova
fauna e na nova flora, e
alguns cartógrafos tiveram-nas em conta. Tudo isso era o rasgar de um mundo na
verdade novo; o nosso planeta tornava-se por assim dizer mais pequeno, e do
confronto de religiões, de hábitos, de costumes, de procedimentos entre povos
que pela primeira vez entravam em contacto, ou pela primeira vez podiam ter
relações assíduas e através de vários interlocutores simultaneamente, desse confronto
e desse encontro de culturas havia afinal de sair o mundo em que hoje vivemos.
E em que, apesar de tudo, se há-de um dia tornar mais fácil a conversação entre
todos os homens.
Nota introdutória. A imagem do Africano pelos portugueses antes dos
contactos
Constitui uma tentativa de reconstituição, parcial, da imagem do Africano pelos portugueses ou, mais propriamente,
do horizonte referencial em que essa imagem se poderia situar, antes dos
encontros sucessivos com o mesmo, no seu continente de origem, no decorrer dos
séculos XV e XVI. Se uma vertente do problema se cinge ao imaginário
ocidental-cristão que recobre o Negro e a cor negra, tida em conta a
perspectiva própria da Penínssla, outra vertente supera a especificidade da
imagem do Africano, para a enquadrar
no código cultural que num dado momento, século XIV e inícios do século XV,
estaria disponível para tornar inteligível e avaliar a heterogeneidade dos
povos extra-europeus. Deste código, que atravessa vários tipos de discurso e de
público, apropriado em diferentes graus pelos diferentes agentes culturais, serão
afloradas as classificações em que o Outro
Cultural é integrado no plano das suas crenças. Neste, como noutros campos das
representações antropológicas, o peso das imagens prévias é bem evidente nos
primeiros contactos, seja com sociedades de Africa, Asia ou América.
O modo como, dos meados de Quatrocentos aos inícios de Quinhentos, os
portugueses mas também outros europeus que os acompanharam nas suas viagens,
partilhando experiências e formas de sentir, ou que ouviram os seus relatos e
olhavam o Africano. […] desde os primeiros contactos, conferindo por isso uma
atenção especial a Zurara, às primeiras sínteses do saber antropológico em
causa. In José Silva Horta
A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos
Quando nos perguntamos qual terá sido a representação do Africano, em particular do Negro, pelos
portugueses que, ao longo dos séculos XV e XVI o contactaram pela primeira vez
nas costas do seu continente, ou destes receberam notícias, devemos antes de
mais atender à imagem anterior a esses contactos. Esta permite avaliar com mais
aproximação o peso dos referentes culturais dos viajantes, nos seus primeiros
olhares sobre o Africano. Esses
referentes constituem-se como um código de que fazem parte classificações
várias, estereótipos, lugares-comuns e valores que são comuns, no fundamental,
ao Ocidente cristão, espaço cultural a que Portugal pertence». In
Luís de Albuquerque, José Silva Horta, Breves considerações sobre o
outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época
das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN
972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT