jdact
Os Antecedentes do Reino
«(…) Na margem esquerda do Douro,
perto da foz, onde hoje está o alto de Gaia, houve um povoado, Portucale,
antes, no tempo dos Romanos, chamado Cale. Na época visigótica aparece na
outra margem outra povoação com o mesmo nome, apodada de castrum novum, para
se distinguir da anterior, onde estava o castrum antiquum. Na divisão
eclesiástica da época visigótica, o Portucale antigo pertencia à diocese de
Coimbra e o novo era sede de bispado. Os livros de linhagens conservam a
tradição de um rei mouro de Gaia e do seu castelo. (De facto existe no concelho
de Gaia um lugar chamado Mafamude, nome de origem árabe). Passava nesse
ponto a estrada romana que vinha de Braga e Lisboa. Não há vestígios de
qualquer ponte romana entre as duas margens do Douro, mas a estrada, que era
uma das principais da Península, supõe evidentemente uma facilidade de trânsito
e uma passagem cómoda de um lado ao outro. O Douro marcava na época romana a
fronteira entre a Gallaecia, que tinha a capital em Braga, e a
Lusitânia, cuja capital era Mérida. Com as invasões germânicas, constituem-se o
reino suevo, abrangendo a Cantábria, toda a Galiza romana e ainda uma parte da
Lusitânia ao sul do Douro, que no sentido norte-sul não chegava a alcançar o
Tejo e no sentido oeste-leste ia um pouco além da nascente do Mondego para o
interior das Beiras. A capital deste reino era em Braga, que já fora a capital da
Galiza na época romana. Com o reino dos Suevos, a Galiza e a parte litoral da Lusitânia
ao norte do Tejo aparecem unidas na mesma entidade política. Há indícios de
que, neste conjunto, a região à volta de Portucale, estendendo-se um pouco ao
norte e um pouco ao sul do Douro, se afirmava com uma identidade própria. É
assim abolida, especialmente nesta região, a velha fronteira romana entre a
Lusitânia e a Galécia.
A Lusitânia todavia não
desapareceu do mapa, embora se alterassem os seus limites. Era este o nome
atribuído pelos Visigodos a uma região que compreendia o nosso Ribatejo, o Alentejo,
a actual Estremadura espanhola e ainda os territórios de Salamanca e
parcialmente de Toledo, isto é, a antiga Lusitânia romana, excepto o reino
suevo. O seu eixo era o rio Tejo, o seu limite sul o Guadrana e a sua capital
continuava a ser Mérida. como na época romana. Os muçulmanos herdaram o nome
Lusitania, dando-lhe a forma Luxidania e aplicando-a a toda a Lusitânia
romana mais a Galiza, sempre com a capital em Mérida. À medida que os cristãos
avançavam, os limites da Lusitânia, ou província de Mérida, baixavam ao norte,
e essa parte restante ficou sendo conhecida pelo nome de Al-Gharb, cujo limite
norte, depois do Douro, foram sucessivamente o Mondego e o Tejo, até se
reduzirem à actual província com esse nome (Algarve).
Contrariamente ao que geralmente
se crê, o nome Lusitania não desapareceu com os geógrafos da
antiguidade. Está certamente na origem do nome Luzeña, que se encontra
na Primera Cronica General de España, do século XIII. Aí se lê: la
provincia de Luzenna, que es ell Algarve. Esta última palavra tem aqui o
significado do Al-Gharb mouro, que entretanto recuara para lá do Tejo, como se
vê neste outro texto da mesma crónica: otra tierra ovo que llamaban Luzenna,
que es entre Guadiana e Tajo, e pusieron-le así nombre unas gentes que la
poblaran e se llamaban Lusios. Na crónica portuguesa de 1419 a forma latina
Lusitania aparece também como sinónimo de Alentejo. Não se conhece forma
portuguesa da palavra, o que não prova que ela não se usasse na língua falada.
Mas a forma latina permaneceu no latim medieval, que era a língua escrita dos
clérigos. Na Vida de S. Teotónio, texto do final do século XII, diz-se
que Afonso Henriques em certa época era infante e chefe (dux) de Portugal, e que com o processo
do tempo e a ajuda de Deus se tornou rei de quase toda a Lusitânia e de parte
da Galiza (tocius pene Lusitane et parte Gallecie rex). Isto significa
provavelmente que Portugal é a região que Afonso Henriques herdou, Lusitânia as
regiões que conquistou ao sul do Mondego e Galiza os territórios que possuiu em
Zamora e ao norte do Minho». In António José Saraiva, A Cultura em
Portugal, Teoria e História, Gradiva Publicações, 1994, 2007, ISBN
978-972-662-372-4.
Cortesia de GradivaP/JDACT