«Quando viu o marido regressar do templo, a esposa do chefe
da aldeia forçou-se a acreditar que trazia ao ombro um saco de trigo. Na
véspera, o casal de camponeses tinha festejado o aniversário da filhinha, que
estava encantada com o presente que recebera: uma boneca de pano que o pai lhe
fizera. Com as amigas da sua idade, brincava no meio da estrada que atravessava
a Colina dos Pássaros, uma aldeia da província de Heracleopólis, no Médio
Egipto. O homem atirou o saco vazio ao chão. Não há mais nada. Os próprios
sacerdotes se arriscam a morrer de fome e os deuses não tardarão a regressar ao
céu, pois ninguém pensa em respeitar as leis dos nossos antepassados. Mentira,
corrupção, egoísmo: eis os nossos novos senhores. Dirige-te ao vizir e depois
ao faraó, se for preciso!
Já não há faraó, apenas chefes de clã que se batem entre si
e pretendem exercer o poder supremo. O norte do país está sob o jugo dos
príncipes líbios que se comprazem na anarquia e nas suas querelas internas. E o
faraó negro? Ora, esse! Deixou um exército em Tebas para proteger a cidade
santa do deus Amon, onde reina a irmã, a Divina Adoradora, e encerrou-se na sua
capital, Napata, nos confins da Núbia, tão longe do Egipto que já o esqueceu há
muito tempo! (Os acontecimentos desenrolam-se cerca de 730 a C.) Tenho a
certeza que nos ajudará! Desengana-te, é incapaz disso. Embora se afirme rei do
Alto e do Baixo Egipto, apenas controla a sua província lá dos confins e o sul
do vale do Nilo. Abandona o resto do país à desordem e à confusão. Era
necessário preveni-lo que estamos a mergulhar na miséria, que... É inútil
afirmou o chefe da aldeia. O faraó negro contenta-se com o seu falso reino.
Para ele, nós não existimos. Ainda tenho peixe seco, mas apenas para alguns
dias... Vão considerar-me responsável pela fome. Se não encontrar uma solução,
morreremos todos. Não me resta mais do que suplicar ao príncipe de
Heracleopólis que nos socorra. Mas ele é fiel ao faraó negro! Se também ele me
falhar, irei até mais a norte. A mulher agarrou-se ao marido. Os caminhos não
são seguros, as milícias líbias prender-te-iam e cortar-te-iam o pescoço! Não,
não deves partir. Aqui, na Colina dos Pássaros, estamos em segurança. Os
nortistas nunca ousariam aventurar-se tão longe. Então, morramos de fome... Não,
pára de receber os impostos, racionemo-nos e partilhemos o que nos resta com as
outras aldeias! Assim, aguentar-nos-emos até à cheia.
Se for má, estamos condenados. Não desesperes, rezemos dia
e noite à deusa das colheitas. O homem olhou ao longe. Que futuro nos resta? Os
tempos felizes desapareceram para sempre e viver tornou-se um fardo. Como
podemos acreditar nas promessas dos homens de poder? Só têm como objectivo o
enriquecimento pessoal e as suas belas palavras só a eles próprios seduzem. As
garotas brincavam com as bonecas, num universo maravilhoso de que só elas
possuíam a chave. Ralhavam e tornavam a ralhar, porque as marotas das bonecas
desobedeciam constantemente. A camponesa sorriu. Sim, a esperança existia.
Existia nos risos das crianças e na sua instintiva recusa da tristeza. O vento
do norte levantou-se, arrastando uma nuvem de pó que cobriu o limiar das casas.
Com o olhar triste, o chefe da aldeia sentou-se num banco de pedra colocado em frente da parede da sua
casa. No instante em que a mulher agarrou numa vassoura, o solo tremeu.
Um ruído surdo, ainda distante, vinha da estrada de Mênfis, a
cidade mais populosa do país e o seu principal centro económico. Mênfis
ignorava o medíocre reinado do faraó negro e adaptava-se cada dia mais à
ocupação líbia. Formando uma roda, as
garotinhas explicavam às bonecas que tinham que ser muito obedientes para
crescerem e usarem lindos vestidos. Uma
nova nuvem de pó subiu até ao céu e o ruído surdo transformou-se num estrépito
semelhante ao que seria provocado pela carga de uma manada de touros
enfurecidos. A camponesa avançou,
olhando para norte, mas ficou encandeada. Os raios do sol reflectiam-se em
superfícies metálicas que os transformava numa luz branca que cegava. Carros constatou o chefe da aldeia, saindo do seu torpor. Carros,
soldados com capacetes e couraças, escudos, lanças... Vindo do Delta, o exército nortista abatia-se sobre a Colina dos
Pássaros». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand
Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
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