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«(…) Contudo, durante aquelas primeiras malditas semanas em que fomos companheiros de quarto, até a
suave respiração dele me impedia de adormecer. Sentava-me junto à janela
embrulhado num cobertor, fumando o meu cachimbo e olhando as estrelas, com uma
dor de desalojado no estômago. Durante quanto tempo ainda teria de ser um
refugiado na minha própria cidade? Era estranho, mas os meus pensamentos
voltavam-se frequentemente para meu pai, de cadeira dobrável debaixo do braço e
um romance na mão a caminho da praça Saski, onde eu soltava pipa. Todas as vezes,
aquela imagem afável dele a me vigiar penetrava no meu espírito, como um filme
mudo paralisado num único fotograma. Uma manhã, ao nascer do sol, percebi porquê:
aquele seu cuidado paternal, aqueles seus gestos distintos, representavam um
modo de vida que os nazistas andavam assassinando. Embora essa acabasse por se
revelar apenas uma das razões pelas quais meu pai fora encontrar-se comigo…
Uma noite, durante a minha segunda semana no
gueto, Adam acordou de repente de um pesadelo e começou a choramingar, a cabeça
enfiada no travesseiro. Depois de algum tempo, arrastou-se até mim, vestido só
com a parte de cima do pijama, tremendo
de frio, os braços esticados para se equilibrar, como um duende dançarino
balançando ao luar. Devia ter tirado as calças do pijama durante a noite,
porque ultimamente nunca deixava que eu ou a mãe o víssemos nu; o seu melhor amigo,
Wolfi, dissera-lhe estupidamente que tinha os joelhos ossudos e que aquela
marca de nascença no tornozelo era ridícula. Quando lhe perguntei o que se
passava, baixou os olhos para o chão e sussurrou que eu já não gostava dele. Quanta
coragem não lhe deve ter sido necessária para se aproximar assim do Lobo Mau! A
minha vontade era envolvê-lo nos braços e dar-lhe um beijo no cabelo sedoso,
mas contive-me. Foi um momento de triunfo sinistro sobre aquilo que eu sabia
estar certo.
Desolado com o meu silêncio, começou a chorar. Você me
odeia, tio Erik, balbuciou. A essa altura, fiquei contente ao ver as suas
lágrimas e ao ouvir o desgosto na sua voz. Sabe, Heniek, alguém tinha de ser
castigado por nossa prisão, e eu sentia-me impotente para agir contra os
verdadeiros vilões da nossa ópera. Vá dormir, disse-lhe eu com aspereza. Como é
fácil perder o controle do amor! Uma lição que já aprendi e tornei a esquecer
uma meia dúzia de vezes ao longo da minha vida. Mas, se você pensa que eu só
quis magoar Adam, está enganado. E consegui o que queria, já que a vergonha
gelada que senti nessa noite ainda hoje me persegue.
Stefa costumava acompanhar o filho à escola clandestina na rua
Karmelicka todas as manhãs às 8h30, a caminho da fábrica onde costurava
uniformes para o Exército alemão durante dez horas por dia. No princípio da
tarde era eu que ia buscar o menino para levá-lo para casa, já que o meu
trabalho na Biblioteca Iídiche terminava às 13 horas, mas ele recusava-se a dar-me
a mão e desatava a correr à minha frente. Chegando em casa, atirava-se como um
saco de batatas para a cadeira dele junto à mesa da cozinha, com a postura de
um combatente infeliz numa guerra não declarada. Eu fazia-lhe o almoço, que
geralmente consistia em pão com queijo e sopa de cebola ou de nabo, receitas do
meu tempo de estudante em Viena. A essa altura ainda tínhamos pimenta. Adam a
moía como um louco por cima da sopa, salpicando de preto a superfície
fumegante, e a seguir levava a tigela à boca com ambas as mãos e saboreava o
sabor picante». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009,
Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN
978-972-004-728-1.
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de ERecord/PortoEditora/JDACT