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O
Gibão de Mestre Gil
«(…) Fica-nos Erasmo a quem, com
imperativa decisão alguns acusaram de ter chocado o famigerado ovo de onde
Lutero saiu. Erasmo e o erasmismo são temíveis fenómenos culturais para poderem
ser abordados sem uma série de cautelas dignas do mesmo Erasmo. Entre outras
cautelas, quando se fala de Erasmo, convém distinguir duas coisas: uma, a sua
crítica de costumes, que revela da teologia moral; outra, a sua crítica
explícita e a mais das vezes implícita, de matéria teológica propriamente dita.
Envolvendo estas duas vertentes do seu labor crítico (deixamos de lado a
critica filológica que é a ferramenta erasmiana propriamente dita), há a considerar
a forma que Erasmo dava à sua crítica. Este último ponto é de importância
capital, como é sempre capital a forma sobre a qual tudo se manifesta, ao contrário
do que é costume supor-se. A novidade de Erasmo, se exceptuarmos o contributo
que hoje chamaríamos científico, isto é, os seus trabalhos de exegese,
reside justamente na forma. Isto, supremamente, o distingue dos
humanistas que o precedem ou são seus contemporâneos, e dá à sua acção um
carácter revolucionário que ultrapassa de longe a letra dos textos que a Europa
tem sob os olhos, a inquietam, a divertem, a escandalizam e a interessam.
Antes de Erasmo já começava a
tornar-se manifesto que a Cultura não era apanágio da que, além do carisma religioso,
era uma classe, a classe eclesiástica. Mas foi em Erasmo e através dele que
isso se tornou visível, palpável, irrefutável e sem remédio. Justamente Erasmo
soube, como o saberão Lutero no seu domínio, ou um Descartes e um Voltaire mais
tarde, encontrar o tom, digamos, o lamiré, que permite pôr fora de moda
uma mentalidade, um hábito secular, uma tradição, mesmo veneráveis. É um
fenómeno que tem muitas semelhanças com o do aparecimento de uma moda, mas
precisamente uma moda é assunto sério. Erasmo representa sob o plano da
cultura, especialmente das humanidades, o aparecimento do clerc franc tireur,
a liberdade de opinar em tais matérias paralela da liberdade de comerciar sem o
cerceamento e a limitação próprias da época feudal. Como a burguesia nascente soube
encontrar as vestiduras convenientes para revestir e exaltar uma nobreza de
novo género, Erasmo encontrou o inimitável tom livre, desenvolto, superior
porque seguro, que por si só reenviava todo um estilo mental, que era um modo
de existir, para o sempre desagradável e em parte injusto rol dos
esquecidos e caricatos.
Como se só esperassem esse sinal,
essa música nova, de toda a parte, mas sobretudo daquelas zonas em que já se
sentia também a anquilose e o cansaço da tradicional cultura, surgiu o
entusiasmo, a adesão, numa palavra o erasmismo que permitia aos
possuidores de técnicas novas sentir-se uma família. A análise exaustiva
dessa forma que é a invenção, a marca do génio próprio de Erasmo não cabe no
nosso propósito. Para ele basta, entre outros caracteres, assinalar o que se chama,
talvez sem as cautelas devidas, a ironia de Erasmo. Por demais habituados ao
que sem o sabermos é a marca da fábrica da modernidade escapa-nos o alcance
fantástico, revolucionário, da ironia como tom natural da Cultura». In
Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva,
Publicações, 2004, ISBN 972-662-945-4.
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