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13
de Julho de 1793
«(…) Sentiu fome enquanto tentava
lobrigar na escuridão a zona da saída e pensou no que podia sonhar para o
almoço no mosteiro. Quando cismou que estava a olhar para os olhos de alguém,
estarrecidos nos seus, crentes e ansiosos, já essa pessoa os retirara e fugia. Sentiu-se
percorrer por um arrepio, porque observado. Ainda descortinou um véu a roçar
numa cortina, mas logo surgiu o eunuco marroquino, que o acompanhou à saída. Ao
ver a luz do dia e o calor do Sol cravando a ardência nas suas mãos descobertas
e no rosto, sacudiu ao de leve os ombros, como para se libertar daquele leve mofo
de baú da nau visitada.
Frei João evitou julgamentos
precipitados, pobre homem, pensou, num país desconhecido, a passar fome, a
resolver um assunto de Estado, com a tamanha responsabilidade que trazia às
costas, seguramente não o podia interpretar mal. Pareceu-lhe estranho, no
entanto, estar tanta gente naquele barco e só se ter cruzado com um criado, o arrais
e alguém de raspão. Mas isso não era da sua conta. Enquanto subia ao coche e se
deslocava ao encontro de Sua Excelência, de imediato, como lhe fora incumbido,
lembrou-se de quando nem contava dezasseis anos e partira para a Europa, munido
de cartas de recomendação para algumas casas de comércio francesas. Os
vendavais acompanharam aquele barco como fanáticos cães de guarda. Porque as
suas primeiras viagens foram um martírio, em caso algum lhe foram propícias,
adquiriu o enjoo de viajar para o resto da vida. Malgrado ser também a fonte do
seu sustento. Os perigos foram tantos que não se lhe podiam chamar navegação, apenas
se lançavam de porto em porto) sempre atingindo terra firme de modo quase
trágico, in extremis, já depois de rezadas todas as orações e sendo o
fervor com que o faziam a última esperança. A sua viagem significava uma
epopeia pessoal, mas há que estender o longo mapa do Mediterrâneo, menos
pacífico do que pode parecer à partida, para a ver na plenitude. Andou de
arribação em arribação: da velha Damasco, partiu rumo à Alexandria, onde chegou
sem problemas. Dali, alcançou Creta, mas na viagem para Tripoli esteve a pique
de naufragar. Também antes de atingir Carania, na ilha da Sicília. A viagem até
à Córsega foi turbulenta, mas França finalmente estava à vista, onde atracou em
Marselha. Infelizmente não conseguiu abrigo em nenhuma das casas para as quais
fora recomendado e prosseguiu para Cartagena, em Espanha, onde teve o mesmo
destino. Em Granada e Cádis, também a boa sorte não lhe sorriu, e foi já nas
temperaturas e amplitudes do Atlântico que encontrou Lisboa.
Acolheu-o em 1750, e ali resolveu
permanecer, mal podendo suspeitar que daí a algum tempo a terra se assemelharia
à pior das tempestades em mar alto. Mal sabendo o que ainda teria de lutar durante
esses próximos anos, pois chegara a um local movimentado, é certo, mas apenas confiando
na intervenção de Deus, porque não conhecia ninguém que o pudesse auxiliar e
sem qualquer recurso económico além de um punhado de moedas, de uma mala com livros
e umas poucas vestimentas. De qualquer modo, tudo lhe parecera melhor naquela imensa
manhã em que conheceu o Tejo, um rio que se abria ao mundo, ao mar e abria a cidade,
que lhe parecia pequena e bela. Estava cansado de quase naufragar. Quase naufragar
não é naufragar, mas é imaginar com todas as forças os ossos molhados e as carnes
condoídas a serem engolidas pelas águas. Não naufragar, naufragando, era como ele
se referia a essa experiência». In Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015,
Edições Parsifal, 2015, ISBN 978-989-876-008-1.
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