«(…) Marginal por definição, era uma tal pressão capaz de alterar a fundo a
imagem interior do que éramos e podíamos ser? Não é mera hipnose de intelectual
imaginar-lhe poderes de subversão que uma vez mais não traduziam senão o eco
atrasado de uma revolução já acabada algures e sem impacte visível sobre a
inamovível boa consciência nacional, aliás em fase de apopléctico e delirante
narcisismo? Apesar do condicionalismo tão particular da época, com a sua
censura mais ou menos ubuesca, apesar do fenómeno sociologicamente minoritário
das suas expressões oficiais, a sensibilidade quenas atitudes e gestos
surrealistas se encarnou trouxe às uperfície um Portugal outro, anómalo, eficaz
justamente até por não propor desta vez reforma ideológica, cultural ou ética de
nacional recorte ou aplicação, mas apenas por tornar inactual, arcaico, fóssil,
um mundo de formas que era a forma mesma do inteiro viver nacional. Mas só o
triunfo da sociedadede consumo dos anos 60 lhe dará um dia emprego histórico.Talvez
não por acaso, a mesma época ou imediatamente contígua conheceu a apoteose
cultural mais nacionalista de que há memória nos nossos anais. Confundida com
uma expressão da ideologia oficial mais exorbitada, em pleno reino não só de uma
genérica hegemonia cultural da esquerda, mas sobretudo do império sempre
omnipresente do nacionalismo ou do mero bom senso, o fenómeno da chamada
filosofia portuguesa não mereceu a atenção devida. Ou mereceu-a, quer dos seus profetas
e seguidores quer dos seus irónicos impugnadores, em termos que não
corresponderam à importância sociológica e mesmo mítica de tão singular
aventura. Sem expressão literária eminente (no plano do romance ou da poesia) o
movimento da filosofia portuguesa, apesar das suas conotações ideológicas, do
estilo provocatório e intimidativo que por vezes assumiu (Jornal; ficou
demasiado confinado aos limites de uma seita, à apologia sem nuances de um guru
(Álvaro Ribeiro) e passou aos olhos de muitos como a ideologia cultural de um
fascismo lusitano que em Portugal até aos anos 50 não fora capaz de ter os seus
Gentil e ou os seus Rosenberg. Na realidade e pese ao estilo peremptório de
muitos dos seus iluminados seguidores (a começar pelo iniciador Álvaro Ribeiro),
o movimento da filosofia portuguesa interessa precisamente por representar
talvez a primeira tentativa de uma contra-imagem cultural da realidade
portuguesa para inverter toda a mitologia cultural de tradição liberal e iluminista
e em particular aquela que, confessada ou inconfessadamente, tentou refazer
nessa linha a imagem nacional, quer dizer, a da Geração de 70. Amalgamando, por
vezes em termos de duvidosa exegese, contribuições anticonformistas de variada
ordem e alcance (Sampaio Bruno, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra, Teixeira de
Pascoaes, Fernando Pessoa no plano nacional e Aristóteles e Hegel no plano universal)
a filosofia portuguesa oferece de nós mesmos a mais articulada contra imagem
cultural de tipo místico-nacionalistaque se conhece. Essa contra-imagem só
oferece uma organicidade potente sob a pluma exotérica e brumosa de Álvaro
Ribeiro. Noutros representantes do movimento como Orlando Vitorino e António
Quadros (sobretudo neste último, sensível aos movimentos do século) essa imagem
é mais fluida, mas não tanto que não tenha de comum com a do mestre esse
apologetismo intrínseco da excelência ímpar do ser português, não apenas na sua
configuração ético-ontológica, mas cultural. Jamais o velho (mas histórico e
situável) complexo cultural lusitano foi impugnado com mais veemência e mais
cópia de argumentação que sob as plumas dos representantes desse movimento. Aparentemente
desqualificado pelo seu esoterismo ou pelo seu misticismo abrupto, a imagem de
um Portugal-Super-Man, portador secreto de uma mensagem ou possuidor virtual de
um Graal futuro, encontra em cada um de nós ecos por de mais equívocos, para
poder ser considerado e atirado para o simples rol das aberrações projectivas
da nossa esquizofrénica vida nacional». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade,
Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN
978-972-662-765-4.
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