Cortesia
de wikipedia
O
Tempo do céu
«(…)
Poder corrigiu Lengar. Olhou para o
morto. Sabes o que se pode fazer com o ouro? Usá-lo na roupa?, sugeriu Saban. Imbecil!
Podem comprar-se homens. Lengar recuou. As sombras das nuvens eram agora muito
escuras e as aveleiras agitavam-se ao sabor do vento fresco. Compram-se
lanceiros continuou. Compram-se archeiros e guerreiros! Compra-se poder! Saban
apanhou um dos pequenos losangos, depois afastou-se do caminho, quando Lengar
tentou recuperá-lo. O rapaz recuou através da pequena clareira e, quando lhe
pareceu que Lengar não o perseguiria, acocorou-se e espreitou o bocadinho de
ouro. Parecia uma coisa estranha para comprar poder. Saban conseguia imaginar
os homens a trabalhar por comida, por vasos de barro, por sílex, por escravos
ou por bronze, que poderia ser transformado em facas, machados, espadas e
punhos de lanças, mas por este metal brilhante? Não podia cortar, existia simplesmente, porém,
mesmo naquele dia nublado, Saban podia ver que o metal cintilava, cintilava
como se um bocado de sol estivesse preso dentro dele; estremeceu de súbito, não
por estar nu, mas porque nunca antes havia tocado em ouro, nunca tivera na mão
uma raspa do Sol todo-poderoso. Temos de o levar ao pai disse em tom reverente.
Para que esse velho tolo o acrescente ao seu tesouro?, perguntou Lengar em tom
de desprezo. Voltou ao corpo e dobrou a capa por cima das hastes das flechas,
vendo que as calças do morto estavam presas por um cinto com uma fivela de ouro
maciço, enquanto tinha mais losangos pequenos ao pescoço pendurados num tendão.
Lengar olhou para o irmão mais novo, lambeu os beiços e pegou numa das flechas
que caíra das mãos do forasteiro. Segurava ainda o seu arco comprido, colocando
na corda a flecha de penas pretas e brancas. Olhava para as aveleiras, evitando
deliberadamente o olhar do meio-irmão, mas Saban percebeu imediatamente o que
passava pela cabeça de Lengar. Se Saban sobrevivesse para contar ao pai acerca
deste tesouro do Povo da Fronteira, então Lengar perdê-lo-ia, ou pelo menos
teria de lutar por ele; mas se Saban fosse descoberto morto, tendo nas costelas
uma flecha de penas pretas e brancas, pertencente ao Povo da Fronteira, ninguém
suspeitaria que Lengar fosse o autor da morte, nem que este se tinha apropriado
de um enorme tesouro em seu proveito. Os trovões ribombavam a ocidente e o vento
frio achatava o cimo das aveleiras. Lengar esticava o arco, embora não olhasse
para Saban.
Olha para isto!, exclamou subitamente Saban, segurando no
pequeno losango. Olha! Lengar aliviou a pressão da corda enquanto espreitava e
nesse mesmo instante, o rapaz partiu como se fosse uma lebre saltando das
ervas. Correu através das aveleiras e pela vereda larga da entrada do Velho
Templo pelo lado do Sol. Havia aí mais postes apodrecidos, tais como os que
rodeavam a casa dos mortos. Teve de se desviar para ultrapassar os tocos e,
enquanto girava por entre eles, a flecha de Lengar passou-lhe junto à orelha. Um
trovão rasgou os céus e a chuva começou a cair. As gotas eram enormes. Um raio
cintilou pela outra encosta. Saban correu, dando voltas e curvas, sem se
atrever a olhar para trás, para ver se Lengar o perseguia. A chuva caía cada
vez mais forte, enchendo o ar com o seu malévolo rugido, mas servindo de biombo
para o esconder enquanto corria para norte e depois para oriente, em direcção à
aldeia. Gritava enquanto corria, esperando que os donos dos rebanhos pudessem
estar
ainda nas pastagens,
porém não viu ninguém até ter passado os túmulos no cimo da colina,
atravessando o atalho lamacento entre os pequenos campos de trigo que eram
açoitados pela chuva torrencial.
Galeth, tio de Saban e mais cinco homens, regressavam à
aldeia quando ouviram os gritos do rapaz. Voltaram-se na direcção da colina,
enquanto Saban corria à chuva agarrando-se ao gibão de pele de veado do tio. Que
se passa, rapaz?, perguntou Galeth. Saban agarrou-se ao tio. Tentou matar-me!, exclamou
ofegante. Tentou matar-me!
Quem?, perguntou Galeth. Era o irmão mais novo do pai de
Saban, alto, de barba cerrada e famoso pelos seus feitos de força. Dizia-se que
Galeth uma vez tinha erguido sozinho um poste do templo, que não era dos mais
pequenos, mas sim um enorme tronco cortado, que sobressaía por cima dos outros
postes. Tal como os companheiros, Galeth transportava um enorme machado de
lâmina de bronze, pois estavam a derrubar árvores quando a tempestade chegara.
Quem tentou matar-te?, perguntou Galeth. Foi ele!, gritou Saban, apontando para
a colina onde Lengar acabara
de aparecer com o arco na mão e uma nova flecha metida na corda. Lengar parou.
Nada disse, limitando-se a olhar para o grupo de homens que agora abrigava o
seu meio-irmão. Retirou a flecha da corda. Galeth olhou o sobrinho mais velho. Tentaste
matar o teu próprio irmão? Lengar riu-se. Eu não. Foi um Fronteiriço. Desceu
lentamente a colina. Tinha o longo cabelo negro molhado da chuva, muito liso e
colado à cabeça, dando-lhe um ar assustador. Um Fronteiriço?, perguntou Galeth,
cuspindo para afastar o azar. Havia muita gente em Ratharryn que achava que
Galeth e não Lengar deveria ser o próximo chefe, mas a rivalidade entre tio e
sobrinho empalidecia diante da ameaça de um ataque do Povo da Fronteira. Há
Fronteiriços na pastagem?, perguntou Galeth. Só aquele, disse Lengar em tom
descuidado. Meteu a seta do Fronteiriço dentro da bolsa. Só aquele repetiu.
Agora está morto. Então estás a salvo, rapaz disse Galeth a Saban. Estás a
salvo». In Bernard Cornwell, Stonehenge,
1999, Editora HarperCollins, 2008, Editora Record, tradutor Alves Calado, ISBN
978-850-107-985-5.
Cortesia
de ERecord/JDACT