«(…) O nacionalismo orgânico do antigo regime favoreceu a objectiva
desnacionalização de milhares de portugueses. Em compensação, teria contribuído
para colmatar, melhor que a ideologia patriótica do liberalismo, o abismo
persistente entre a nossa autêntica realidade e a imagem hipertrofiada com que
sempre temos vivido a nossa vida imaginária? Houve no salazarismo concreto (e
na sua ideologia expressa nos Discursos do universitário assaz racionalista que
foi Salazar, uma tentativa para adaptar o país à sua natural e evidente
modéstia. Todavia a glosa do relativo sucesso dessa tentativa é que não foi
nada modesta e breve redundou na fabricação sistemática e cara de uma
lusitanidade exemplar,cobrindo o presente e o passado escolhido em função da
sua mitologia arcaica e reaccionária que aos poucos substituiu a imagem mais ou
menos adaptada ao País real dos começos do Estado Novo por uma ficção ideológica,
sociológica e cultural mais irrealista ainda que a proposta pela ideologia republicana,
por ser ficção oficial, imagem sem controlo nemcontradição possível de um país
sem problemas, oásis da paz, exemplo das nações, arquétipo da solução ideal que
conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com um desenvolvimento
harmonioso da sociedade. Esse optimismo de encomenda teve nas famigeradas notas
do dia o seu evangelho radiofónico. Não vivíamos num país real, mas numa
Disneylandia qualquer, sem escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas.
O sistema chegou a uma tal perfeição na matéria que não parecia possível
contrapor uma outra imagem de nós mesmos àquela que o regime tão impune mas tão
habilmente propunha semque essa imagem-curta (não apenas ideológica, mas
cultural) aparecesse como uma sacrílega contestação da verdade portuguesa por
ele restituída à sua essência e esplendor. Não se percebeu nada do espírito do
antigo regime e do seu êxito histórico quando não se vê até que ponto ele foi a
mais grandiosa e sistemática exploração do fervor nacionalista de um povo que
precisa dele como de pão para a boca em virtude da distância objectiva que
separa a sua mitologia da antiga nação gloriosa da sua diminuida realidade
presente. O Estado Novo voltou contra o sistema democrático um patriotismo que
nãos oubera traduzir nos factos nenhuma das promessas que o haviam justificado
nos finais do século XIX. Sob tão sólida peanha o Estado Novo, mesmo cada dia
mais envelhecido, podia durar indefinidamente. A mentira orgânica que a sua
impossível consubstanciação orgânica com a Nação, por mais formal que realmente
orgânica, representava junto da parte mais politizada do povo português,
poder-se-ia ter prolongado, menos pela sua própria capacidade do que pelo vazio
quase absoluto da ideologia liberal sobrevivente. E na verdade em face desse
obstáculo, balizado com o nome ainda mágico da Democracia, o antigo regime foi
capaz durante mais de trinta anos de resistir vitoriosamente. Essa resistência foi-lhe
tanto mais fácil quanto era certo que o ferro de lança da Democracia, que na
sombra, ou de quatro em quatro anos à luz de um arremedo de dia eleitoral a
defendia, era um partido que não possuía desse ideal nem da prática
democráticas tradicionais, nenhuma lembrança fervorosa ou projecto digno de crédito.
Os fins dos anos 30, começos dos anos 40, veriam em Portugal uma mutação que
por confinado ou claro destino deslocou, como até então ideologia alguma o
conseguira, o eixo sobre o qual repousaram até aí todas as figuras da relação entre
os portugueses e Portugal. Pela primeira vez o sentimento patriótico
característico da política moderna sob o signo português era desmascarado, na
teoria e na prática, e subordinado a uma concepção revolucionária da História
que transfere para a luta de classes o segredo do seu dinamismo, fiando da sua
abolição o ajustamento efectivo do indivíduo ao povo a que pertence enquanto
sociedade revolucionária pela supressão vitoriosa da classe dominante que até então
confundira como seus os interesses colectivos». In Eduardo Lourenço, O Labirinto
da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000,
ISBN 978-972-662-765-4.
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