«(…)
Ei!, gritou para mim. Vai acabar caindo e partindo o pescoço!Vi um reflexo de
mim mesmo naqueles ombros encolhidos, naquele olhar de pânico. Ergui a mão,
fazendo-lhe sinal para que esperasse onde estava, desci atabalhoadamente do
telhado escadas abaixo e atravessei a rua, patinhando na lama. Lá em cima, no
seu apartamento, o homem percebeu que eu não era como ele. Escancarou os olhos
congestionados de vermelho, espantado, e deu um passo atrás. Olá, disse,
cauteloso. Então…, então consegue ver-me?, gaguejei. O rosto dele
descontraiu-se. Perfeitamente. Embora os seus contornos… Rodou a mão no ar,
depois inclinou a cabeça, como quem avalia qualquer coisa. Não estão lá muito
bem; um pouco indefinidos. E não tem medo de mim?, perguntei. Ná! Já tive
outras visões. Além disso, você fala iídiche. Por que é que um ibbur judeu haveria de me
fazer mal? Um ibbur? Um
ser, que regressou da terra que fica atrás da berma do mundo.
Tinha uma maneira poética de falar, o que me agradou. Sorri
de alívio; ele conseguia mesmo ver-me e ouvia-me. E me senti menos preocupado
por saber que havia um nome para aquilo que eu era. Meu nome é Heniek Corben,
disse-me ele. Erik Benjamin Cohen, respondi, apresentando-me como fazia quando
era menino e estava na escola. É de Varsóvia?, perguntou. Sou, cresci perto do
centro da cidade, na rua Bednarska. Franzindo os lábios numa expressão cómica,
ele assobiou baixinho. Belo bairro! Comentou entusiasmado, mas quando a sua
boca se rasgou num sorriso, vi que era uma ruína de dentes podres. Interpretando
a minha careta como sinal de dor física, Heniek sentou-se. Sente-se, sente-se, Reb Yid, disse-me em tom preocupado, puxando um
banco para eu me sentar à mesa da cozinha.
Aquele formalismo parecia um pouco absurdo depois de tudo o
que nós, judeus, tínhamos sofrido. Por favor, trate-me por Erik, pedi-lhe. Sentei-me
devagar, com receio de não encontrar um assento sólido, mas a madeira do seu
banco acolheu generosamente o meu traseiro esquelético, prova de que já estava
pegando o jeito daquela vida nova. Heniek olhou-me de alto a baixo, e a sua
expressão tornou-se mais séria. O que foi? Por um momento, ficou branco. Acho
que talvez … Terminando a frase abruptamente, ergueu a mão nodosa e disforme
por sobre minha cabeça e abençoou-me em hebraico. Com um pouco de sorte, isto
há-de resolver o assunto, disse-me com
ar jovial. Percebendo que era provavelmente religioso, comentei: não tenho
visto qualquer indício de Deus, nem nada que se pareça com um anjo ou um demónio.
Nem fantasmas, nem seres necrófagos, nem vampiros... Nada.
Não queria que ele me achasse capaz de responder a qualquer
das suas perguntas metafísicas. Fez um gesto com a mão, como quem não quer
saber disso. Então, o que posso oferecer-lhe? Que tal um chá de urtiga? Obrigado,
mas descobri que já não preciso beber nada. Importa-se que faça um para mim? Por
favor. Enquanto ele fervia a água, fiz-lhe perguntas sobre o que acontecera desde
que eu saíra de Varsóvia em Março passado. Com um suspiro, ele respondeu: ech basicamente, a mesma velha desgraça. O grande
entusiasmo foi durante o Verão: os russos bombardearam-nos. Infelizmente,
aqueles pilotos idiotas não acertaram na sede da Gestapo, mas ouvi dizer que a
praça do Teatro ficou reduzida a escombros. Baixou a voz e inclinou-se para
mim. Mas há uma boa notícia: os americanos entraram na guerra. Os japoneses nos
bombardearam há uma semana, segundo a BBC; tenho um amigo que possui um rádio
clandestino. Porque está sussurrando? Apontou para o céu. Não quero parecer optimista;
Deus ainda nos pode pregar mais umas peças, se achar que estou sendo arrogante.
Noutros tempos, o espírito supersticioso de Heniek teria arrancado
de mim um comentário sarcástico, mas era óbvio que, com a morte, eu tinha-me
tornado mais paciente. Então, onde é que trabalha? Numa fábrica de sabão
clandestina. E hoje está de folga? Sim, acordei com um pouco de febre. Em que
dia estamos? Dezasseis de Dezembro de 1941. Tinham decorrido sete dias desde
que eu saíra do campo de trabalho de Lublin, onde estivera como prisioneiro,
mas pelas minhas contas só tinha levado cinco dias para chegar a casa, por isso
perdera 48 horas em algum lugar pelo caminho. Talvez o tempo passasse de modo
diferente para os da minha laia. Heniek contou-me que, antes de se mudar para o
gueto, era impressor. A mulher e a filha tinham morrido de tuberculose
havia um ano. Eu até era capaz de aguentar a solidão, baixando o olhar para
esconder a sua perturbação, mas o resto é… É mesmo demasiado. Eu sabia por
experiência própria que o resto significava culpa, e também emoções
mais subtis e confusas, para as quais não tínhamos um nome adequado. Deixou
cair as folhas de urtiga no jarro de cerâmica branca que lhe servia de bule.
Depois, erguendo os olhos com um vigor renovado, perguntou pela minha família,
e eu disse-lhe que minha filha Liesel estava em Esmirna. Estava a trabalhar
numas escavações arqueológicas quando estourou a guerra, por isso ficou por lá.
Já foi visitá-la? Não, tinha de vir aqui primeiro. Mas ela está em segurança. A
menos que… Pus-me de pé num salto, aflito. A Turquia não entrou na guerra,
entrou? Não, não, ainda é território neutro. Não se preocupe». In Richard
Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn
978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.
Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT