A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) De ambos os lados da rua, apinhava-se uma multidão formando
duas filas irregulares recortadas contra as poeirentas fachadas brancas do
casario que se estende até à Sé. Gritos a pedir água e misericórdia soavam como
um coro antifonário. Podiam aí ver-se as muitas e desvairadas gentes da nossa
cidade: cavaleiros e camponeses, barregãs e freiras, pedintes e escravos
pretos, e mesmo marinheiros do Norte de olhos azuis. Subitamente, bandos de
cães vadios desataram a correr, sempre a ladrar, atrás de mim, frei Carlos
Judas, dirigindo-se para ocidente, acompanhando o espectáculo. O padre
semicerrava os olhos e murmurava orações agitadamente. Eu aspirava
profundamente o gélido perfume de ameaça que pairava no ar. E esta noite,
pensei, estaremos a lançar à imprevisível corrente deste mar de loucura o barco
proibido da Passagem. Assim era: as nossas comemorações deveriam ter começado
exactamente há uma semana. Mas a maior parte dos judeus clandestinos, incluindo
a nossa família, tinham adiado a Páscoa na esperança de navegar a salvo por
entre as águas corruptas da
maledicência dos cristãos-velhos à nossa volta.
Perto de nós, um lenhador imundo, com o cabelo desgrenhado,
de repente desatou a gritar com quantas forças tinha: para termos a chuva dos
céus, temos de ter mais sangue! Lisboa tem de se tornar numa Veneza de sangue! Judas
encostava-se às minhas pernas e eu apertei-lhe o ombro. Frei Carlos esfregava
as mãos na sua testa abaulada, como para se proteger. Era um homem corpulento,
atarracado, com uma pele suave e pálida, um nariz carnudo, uma rede de veias
vermelhas nas duas faces, da muita bebida. Poucos o levavam a sério, mas eu
considerava-o um bom amigo. Os seus olhos desolados poisaram-se em mim: não há
nada de que os homens mais gostem do que profanar o sagrado, meu filho.
De súbito invadiu-me um sentimento de tristeza pelo nosso fado. O
cheiro da pimenta das índias entontecia-me, borrifos de sangue salpicaram as
minhas calças e a cara de Judas. Um dos flagelados, soltando guinchos, tinha
arrancado restos da pele dos ombros e
esparzia especiarias sobre si próprio para merecer o aguilhão do amor de Deus.
Pareceu-me reconhecer nos olhos aterrorizados de meu irmão o olhar de uma
criança judia prestes a lançar-se na travessia do mar Vermelho. Fui percorrido
por uma premonição fulgurante, inusual pela
sua convicção: esperámos demasiado, os judeus de Lisboa, para reviver o êxodo e o
Faraó apercebeu-se dos nossos planos. Quando
voltei a mim, frei Carlos, disfarçando o olhar sob uma franja da sua capa, alertou-me em voz baixa: ouve
os lamentos daquele moço flagelado..., é
como se fossem os gemidos dos filhos do Diabo!
Judas fitava-me com uma curiosidade assombrada e expectante. Quando
as lágrimas assomaram aos seus olhos, peguei nele, limpei-o, desfiz-lhe os
compactos anéis do seu cabelo negro como carvão. O meu irmãozito passou-me os
braços em torno do pescoço e eu respondi a frei
Carlos: muito obrigado. Consigo e com estes loucos, acho que por hoje já recebemos
instrução religiosa que chegue». In Richard
Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN
978-972-004-491-4.
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