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«(…) Nós vivemos então um drama digno doHenrique IV de Pirandello. É
difícil conceber que a confusão entre o real e o sonho possa ir mais longe do
que o foi na cabeça do António Vieira das alegações diante do Santo Ofício (maldito), mistura única de lucidez
delirante e delírio divino. Nele se operou como em ninguém mais a conversão da
nossa longa ansiedade pelo destino pátrio em exaltada aleluia, a transfiguração
do simples cantar de amigo com que nos embalámos no alvorecer inquieto, em
cantata sublime ao Quinto Império.Assim liquidámos, no imaginário e em termos
magníficos, o segundo traumatismo, numa barroca inversão que vale bem outras futuras,
postas na conta larga e humanística de nossa-senhora-da-dialéctica. De cativos,
a senhores de sonho do mundo, de humilhados e ofendidos da História, a eleitos,
servidos pelos outros, paranóica mas generosa visão, paralela à que o mesmo
Vieira prometia no céu aos escravos sem redenção terrestre dos engenhos e
fazendas do Brasil, é que Pombal pensou libertar-nos por um europeísmo à Pedro
da Rússia, que não convenceu os nossos boiardos locais, analfabetos, glutões e
preguiçosos, como William Beckford os virá encontrar. Cada período de força do dinamismo
tem sido seguido sempre do que, em linguagem freudiana, se chamaria o regresso
do recalcado.
Os começos do século XIX, momento em que o raio da História nos caiu em
casa, na sossegada e sonambúlica casa portuguesa, farão desse processo uma
estrutura que se manifesta sem falhas há cento e oitenta anos. Em nenhum tempo
do seu percurso a existência nacional foi vivida em termos tão esquizofrénicos
como no século XIX. No centro desse percurso está simbolicamente o ninguém
do frei Luis Sousa e na dramática e quotidiana realidade, um país pela primeira
vez posto na balança da Europa que era ao mesmo tempo a dos seus interesses e
das suas ideologias, tapete de guerra civil ou monarquia a salvar com invasão de
estrangeiros. Aberto com a fuga o Brasil, o século liberal termina com a
liquidação física, se não moral, de uma monarquia a quem se fazia pagar,
sobretudo, uma fragilidade nacional que era obra da nação inteira. O século XIX
foi o século em que pela primeira vez os portugueses (alguns) puseram em causa,
sob todos os planos, a sua imagem de povo com vocação autónoma tanto no ponto de
vista político como cultural. Que tivéssemos merecido ser um povo, e povo com
lugar no tablado universal, não se discutia. Interrogávamo-nos apenas pela boca
de Antero e de parte da sua geração, para saber se éramos ainda viáveis, dada
a, para eles, ofuscante decadência. Curiosamente, o exame de consciência
parricida intentado ao ser nacional tinha lugar na altura mesma em que Portugal
se religava, com um êxito, a essa Europa, exemplo de civilização, cuja
comparação connosco nos mergulhava em transes de melancolia cívica e cultural,
tais como a obra de Eça os exemplificará para o nosso sempre. Nem Herculano,
nem Garrett haviam sentido assim a decadência que também não lhes fora
estranha. Entre a juventude de ambos e a da geração de Antero há a revolução industrial
e a não menos prodigiosa revolução cultural do século XIX de que receberemos
reflexos ou restos não desprezíveis (o criticismo patriótico da geração de
Setenta faz parte deles) e com eles a consciência, por assim dizer física, do
que nos separava da maiusculada e então orgiástica Civilização. Começou então a
doer-nos não o estado de Portugal, as suas desgraças ou catástrofes políticas,
mas a existência portuguesa, pressentida, descrita, glosada , como existência
diminuída, arremedo grosseiro da existência civilizada, dinâmica, objecto de
sarcasmos e ironias, filhos do amor desiludido que se lhe votava. Para fugir a
essa imagem reles de si mesmo (choldra, piolheira) Portugal descobre a África,
cobre a sua nudez caseira com uma nova pele que não será apenas imperial mas imperialista,
em pleno auge dos imperialismos de outro gabarito. A tentativa de recriar uma
alma à século XVI não foi longe: um excesso de lógica nas suas ambições,
legítimas mas incómodas, ministraria ao mundo europeu a prova absoluta da nossa
absoluta subalternidade. O Ultimatum não foi apenas uma peripécia
particularmente escandalosa das contradições do imperialismo europeu, foi o
traumatismo-resumo de um século de existência nacional traumatizada. Podia
imaginar-se que confrontados com tão dura lição viéssemos a reconsiderar um estado
de abatimento e um comportamento de fuga complementar dele». In
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português,
Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
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