jdact
13
de Julho de 1793
«Lisboa
esvanecia-se numa luz precipitada, ofuscando quem dali não era, amedrontando
quem dali não era, tamanha a revelação de si própria. Expunha-se tanto que intimidava.
O correeiro massacrava o couro para o tornar num objecto útil. O sapateiro, como
todos os outros sapateiros, tomava conta das solas para os sapatos em encomenda.
A lavadeira esfregava o pano com pressa de o estender. A calhandreira atirava ao
rio o que ninguém queria de volta. O cangalheiro criticava os seus empregados por
não trabalharem ao ritmo das mortes que o céu lhes enviava de negócio, enquanto
a serenidade de Lisboa se amigava com os truques e as esperanças de uma cidade imortal.
Existia e voltaria a existir. Resistira ao maior abalo do mundo, reerguia-se
cheia de cicatrizes, mas não se envergonhava delas. Exibia-as sem pena de si própria,
fora mais forte do que males inesquecíveis, seguia o seu destino de liberdade,
aprumada, sábia do seu talento de desfilar. Lisboa recebeu-as sem alarde. Qualquer
chegada ao porto era, nessa altura, bem-vinda. Entravam e saíam naus inglesas, holandesas;
enfim, de muitos lugares europeus, porque todos esses lugares gostavam de carregar
o ouro do Brasil. Aliás, nada mais triste do que um porto vazio. No entanto, ninguém
podia imaginar que aquele reino africano pudesse, com um conjunto de ventos amaldiçoados,
enviar tão delicada e inesperada carga para ali.
O dia assinalado no calendário
não se distinguia por nada em particular no encalorado bocejo do Estio, exceptuando
aquela nau que dera à costa pela baía de Cascais, um barco destilando ansiedade,
metendo água do mar. Não armazenava água potável nem quaisquer mantimentos. Outro
barco que o acompanhava trazia o mastro rendido. Quem era aquela gente? De onde
vinha tão prostrada? Já de fora se compreendia que haviam passado por uma certa
tramóia do destino, e Portugal, na sua posição geográfica defronte dos mares, acolhia
o seu desfecho. Demorou algum tempo, mais do que umas simples horas, uns penosos
dois dias, entre a carta enviada ao cônsul-geral dos Estados Marroquinos,
Manuel Pontes, um convite implorado para que fosse a bordo, e a chegada de
ajuda.
Este por sua vez avisou o
ministro do Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, o excelentíssimo Martinho
Melo Castro, que subiu à nau para com os seus olhos averiguar a situação. A informação
foi clara: aquela comitiva encontrava-se com graves carências. A enumeração das
mesmas não tomou forma documental, mas logo a 15 foi pedida a autorização para
entrarem no porto, sem no entanto conseguirem de imediato devido ao baixio da Torre
de Belém. Só no dia 16 ficaram claras as boas-vindas, ao ser permitido fundear
frente ao cais de Belém. Os populares foram passando, mas os guardas, desde o
início, ali protegiam as embarcações de qualquer acometimento derivado da
curiosidade. E, claro de ver, mais a exponenciavam. Sobre o interior do barco, por
ora sem alcance à cortina para a poder levantar e espreitar, nada se sabia. Ninguém
se mexia, não se escutavam ruídos. Os cheiros de comida, dissipando-se na dança
da direcção do vento, eram a única prova de que ali dentro estavam dezenas de
almas a tentar sobreviver. Encafuadas, permaneciam a bordo como se no exterior houvesse
a ameaça de epidemia. Não se queriam mostrar. Por enquanto ninguém sabia ao certo
o que acontecia lá dentro. A populaça desconfiou, começou-se a dizer que a peste
era dentro das naus.
O ministro deslocou-se ao barco fundeado
a duas dezenas de metros da Torre de Belém. Entre ele e o responsável por aqueles
barcos houve uma formal troca de palavras em língua francesa, fria, como pode acontecer
num diálogo entre pessoas pouco fluentes na língua usada. Porém o desespero por
ajuda pode ser compreendido no idioma mais raro. Sou Ahmed Scariage, o arrais ao
serviço de Moulay Abdessalam, responsável por esta comitiva. Vimos de uma
viagem extenuante e já recebemos a graça do vosso benevolente auxílio na ilha da
Madeira e na ilha de São Miguel, ao qual ficaremos eternamente gratos. Mas,
como percebe, ainda não conseguimos encontrar o caminho para casa». In Raquel
Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN
978-989-876-008-1.
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