«(…) Temos, pois, que Raul Soares nos demonstrou duas coisas: que no Crisfal
se narra uma história que não é a mesma que Bernardim nos conta nas suas Éclogas
e na sua novela; que o Crisfal pertence a um género literário diferente
do das cinco éclogas do mesmo Bernardim. Para demonstrar que Bernardim Ribeiro
não é o autor do Crisfal seria preciso provar a diversidade daquilo que um
escritor tem de mais inconfundível e de mais intransmissível, daquilo que,
segundo uma frase célebre de Buffon, é a marca do homem: o estilo. E essa ficou
por demonstrar. Qual será, portanto, a única conclusão admissível a tirar destes
factos? Esta: Bernardim Ribeiro escreveu uma écloga contando a história de um
amor que não era o seu e num género literário que, talvez por isso mesmo, não
era também o das outras suas éclogas.
Agora note o Leitor: admitida esta explicação, tudo o que no Crisfal
nos parece insólito e desusado em relação às Éclogas se explica sem esforço. O
aparecimento de motes e cantigas alheias e de versos castelhanos, três ao
todo..., porque o próprio género da écloga dramática exigira a caracterização
das personagens; a localização geográfica, o amor correspondido, a cena dos
beijos, porque tudo isso estava na história que o Poeta recontava; a objectividade,
a nitidez, a serenidade, porque, diante de um caso alheio, ele estaria
naturalmente num estado de espírito muito diverso daquele com que lamentaria as
suas mágoas.
Mas não desenrolei ainda todo o processo aos olhos do Leitor. Já lhe
falei naquele donairoso acabamento da Écloga; e vou transcrever as duas
estrofes a fim de que o Leitor as releia pesando bem o sentido e a intenção das
suas palavras:
Isto que Crisfal dezia,
assi como o contava,
uma ninfa o escrevia
num álemo que ali estava,
que inda então crescia.
Dizem que foi seu intento
de escrevê-lo em tal lugar
pera por tempo se alçar
onde baixo pensamento
lhe não pudesse chegar.
Eu o treladei dali,
donde mais estava escrito
que aqui não escrevi,
porque mal tão infinito
não se lhe pode dar fim.
O que se fez de Crisfal
não o sabe certo ninguém:
muitos por morto o tem,
mas quem vive em tanto mal
nunca vê tamanho bem.
Só um autor que em relação à história que nos conta estivesse na
situação de simples narrador poderia ter escrito estes versos. Ele próprio se
inculca como tal, gentilmente: eu o treladei dali. Além disso, só com
certo esforço de imaginação poderíamos supor o ingénuo e desajeitado autor da Carta
a dizer de si próprio: o que se fez de Crisfal / não o sabe certo ninguém / muitos
por morto o tem. O que há aqui, com certeza, é uma referência aos zunzuns,
aos dizem que em certa sociedade correriam com respeito ao herói da aventura,
do mesmo modo que naqueles versos anteriores, onde parece que o autor procura
defender o Crisfal da maledicência do mundo: [...] alçar esta história /
onde baixo pensamento / não lhe pudesse chegar. O sentido das estrofes
citadas é talvez esclarecido por esta observação: o Crisfal parece supor
o conhecimento da Carta, porque os temas daquele existem quase todos
embrionários nesta. Já o notou Epifânio Dias:
A carta apresenta vários pensamentos que se encontram na écloga e
expressos por modo semelhante. Assim que parece-nos lícito ver na carta um como
que prelúdio da écloga, tendo o poeta desenvolvido na écloga as ideias que constituem
o argumento da carta».
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim
Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.
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