O
Gibão de Mestre Gil
«(…) Crer coisa diversa não é fazer
obra de historiador mas de profeta às avessas e submeter arbitrariamente o que
foi, e de que nos ficaram testemunhos irrefragáveis, a utopismos respeitáveis na
sua ordem, mas inadequados à verdade de que desejariam reclamar-se. No fundo,
trata-se sempre de idêntico fenómeno: o de homens que não podem já assumir nem
a forma nem o conteúdo da religiosidade medieval, que é, no fundo, a mesma de
hoje, mas que a transfiguram para uso próprio, ou por ignorância, ou por
estesia ou por secreta necessidade religiosa deles mesmos mal conhecida. O
franciscanismo é um fenómeno histórico extremamente complexo, tocado em suas
manifestações exteriores pela presença de um espírito realmente hostil à
estruturação jurídica e social que a Igreja acabou por assumir. O fogo que
consome S. Francisco e o leva nu diante do Bispo não está longe de Montségur. O
génio de S. Francisco foi de o tomar nas suas mãos sem o destruir e de o depor
aos pés dessa mesma Igreja que precisava dele para ser o que idealmente queria
ser e historicamente não era. Estratégia divina ou astúcia da História
como diria Hegel, cada qual interprete o fenómeno como puder e souber, mas o
facto do franciscanismo, aquilo pelo qual ele pôde ser o que foi, reside nessa
conversão, nessa reversão do que ameaçava a visão católica do mundo em seus
fundamentos, em perfeita e sublimada ortodoxia. De certo, a Igreja não será daí
em diante a mesma mas, falando com propriedade, ela não é jamais a mesma em
sentido comum. Mas isso não é razão para atribuir aos gestos que vêm dela, como
serão daí em diante a acção e os actos militantes do franciscanismo, o pimento
suspeito da heterodoxia ou o mais suspeito ainda de uma contradição suplementar
e insolúvel, que seria invisível para a mesma Igreja. Estranha ideia se fazem
esses críticos da ortodoxia. Sem ela não se precipitariam com uma alegria não
dissimulada sobre o mínimo sintoma, a mínima expressão que por humanamente
aceitável, racional, critica, já se lhe afigura um desmentido, um desvio, uma
negação dessa ortodoxia a respeito da qual eles se inventaram uma imagem
caricatural.
Admoesta Gil Vicente os frades
ignaros de Santarém? Audácia heterodoxa, inaudito atrevimento. podiam
empilhar-se toneladas de páginas contra a ignorância fradesca, os seus vícios,
a sua concussão, todas ou quase todas escritas por outros frades, naturalmente.
As audácias de Mestre Gil são uma pálida palinódia para quem tem uma vaga ideia
do que podia escrever um Poggio no De Hypocrisia. E Poggio foi
secretário apostólico de oito papas! Quanto à concepção do Deus como ordem da
Natureza, que mais ortodoxa concepção? De quem teria a Natureza a sua ordem,
peso e medida de augustiniana invocação? Que imagem de tirano aberrante ou
demiurgo impotente tem A. José Saraiva do Deus segundo Santo Agostinho e mais
explicitamente ainda, de São Tomás, um e outro por Mestre Gil citados com a
reverência natural devida aos pilares da ortodoxia? A muito sensata, razoável consideração
de Mestre Gil acerca do milagre e sua natureza de excepção é o lugar comum da
sabedoria cristã. Que ele tenha de o invocar diante de frades só prova que
estes, por ignorância crassa ou mais certamente por paixão que nada tem a ver
com a boa doutrina, se desentendiam de tão comum sabedoria. Daí até ver em tão
inocente e fiel concepção o halo panteísta de uma Natureza como ordem de Deus
ou o mesmo Deus sive Natura há um abismo que nem a história, nem o
texto, nem o contexto, nem a mais ínfima verosimilhança, podem autorizar.
Também não a a:utotizatra a
referência a Raimundo Lúlio. Não sei se a hipótese de um conhecimento ou da
influência de Raimundo Lúlio sobre Gil Vicente é original de A. J. Saraiva. A
hipótese nada tem de inverosímil e certo vocabulário, embora não seja prova segura,
torna aceitável esse conhecimento. Raimundo Lúlio teve uma voga imensa na
Península e entre nós. A Biblioteca de Alcobaça, a leitura dos estudos do padre
Mário Martins com evidência o atestam. O que é mais difícil de demonstrar, uma
vez mais, é a infidelidade do irrequieto e místico franciscano de Maiorca à
ortodoxia. É exacto que algumas passagens das suas obras deram lugar a reparos,
que foi alvo de um processo que melhor conviria chamar maquinação, mas de tudo
isso saiu o mártir de Marrocos ilibado. Sem este exame não teria o lírico do Desconor
sido aceite entre o Beatos. Por mais que pese a gregos e troianos não é costume
da Igreja colocar entre os seus luminares os suspeitos nas obras ou na Fé». In
Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva,
Publicações, 2004, ISBN 972-662-945-4.
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GradivaP/JDACT