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«(…) É certo que São Martinho não era um santo com a
envergadura de Santiago, o Mata-Mouros, que há muito arrebatara o lugar de
protector da Reconquista; contudo, se levarmos em conta a rivalidade existente
entre Braga e Compostela, e o papel que desempenharam São Martinho de Braga (o
outro São Martinho) e Santiago de Compostela, respectivamente santos patronos e
quase fundadores de qualquer uma das duas metrópoles, essa até talvez fosse
considerada uma vantagem. São Martinho de Braga/Dume fora, para além de
arcebispo de Braga, um evangelizador, o homem que convertera os Suevos ao
catolicismo, em data anterior à própria invenção das relíquias de Santiago e
sob cuja invocação também se erigiam muitos templos, pelo que também não era
desajustado à comemoração do nome que se deu ao novo filho varão de Afonso
Henriques. O próprio Martinho Tours, em cujo dia o infante nasceu, tinha uma
história de vida e tradição muito adequada a servir o nome de um jovem infante
como Sancho. São Martinho começara a sua vida como um brilhante soldado nos
exércitos romanos, abandonando a carreira militar por se ter convertido ao
cristianismo, depois do famoso episódio em que rasgara a sua capa para abrigar um
mendigo que, mais tarde, em sonhos, veio a reconhecer ser o próprio Cristo. O
seu carácter belicoso, a sua actividade militar e o seu labor como mentor de conversões
ao cristianismo e evangelizador dos pagãos faziam dele um santo mais que
meritório e condigno para o segundo filho varão do primeiro e conquistador rei de
Portugal, que, também ele baseava as suas ambições e a sua virtude no
desempenho da luta contra o infiel, numa terra onde os pagãos ainda abundavam.
O dia de São Martinho
deve ter sido considerado, por tudo isto, um dia auspicioso para o nascimento
desse infante, que assim vinha ao mundo sob o signo de um patrono que ao longo
da sua vida soubera lutar agressivamente pela expansão da fé cristã e pela
conversão dos pagãos, mas que também soubera ser caritativo e generoso para com
os pobres e necessitados, numa pastoral muito típica de um santo com as
características de missionário-guerreiro como Martinho de Tours. E para um
homem com a linhagem de Afonso Henriques, cujo pai, Henrique da Borgonha, era
originário precisamente da região adjacente ao arcebispado de Tours, onde o túmulo
do santo continuava a atrair: algumas das mais importantes peregrinações da
França medieval, ver um filho nascer no dia de um dos santos patronos da França
devia parecer um sinal muito positivo.
Ora o destino não quis
que o irmão mais velho sobrevivesse, transtornando assim toda a ordem prevista
dos acontecimentos: pela entrada em cena do imponderável. Henrique morreu pouco
depois do nascimento de Sancho, provavelmente ainda durante o primeiro ano de
vida deste último, engrossando, afinal, os números já de si muito elevados da mortalidade
infantil na Idade Média, e deixando um vazio na primogenitura masculina da
linhagem régia. Martinho era agora o próximo nessa linha de sucessão. Deve ter
sido face à probabilidade muito real de Sancho I poder vir a suceder ao pai no
trono que foi decidido começar por mudar-lhe o nome de Martinho para Sancho.
Por muilo nobre que o
nome Martinho fosse, era um nome que não devia ter quaisquer ressonâncias emocionais
como nome de rei. Na Península Ibérica, nunca fora utilizado como tal, nem o
seria no futuro, pelo menos durante os séculos XII e XIII. E talvez tenha sido
essa a razão por que se decidiu mudar-lhe o nome tão cedo. É que, do Martinho
que nasceu neste dia, nunca mais se ouvirá falar. Transformado desde logo em
Sancho, nunca mais seria conhecido por aquele que, afinal, tinha sido o seu
nome de baptismo. De facto, não fora uma lacónica notícia que os anais mais antigos
que temos sobre este facto nos dão, não o saberíamos de todo. Mas os analistas
que trabalhavam no seio do scriptorium do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra entenderam ser de registar esse facto:
Sancho I nasceu na noite
da festa de São Martinho, foi baptizado como Martinho, mas depois foi chamado
Sancho (cognomento Sanctius)».
In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e
Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.
Cortesia de Bertrand/JDACT