segunda-feira, 23 de julho de 2018

Sancho I. O Filho do Fundador. Maria Violante Branco. «O dia de São Martinho deve ter sido considerado, por tudo isto, um dia auspicioso para o nascimento desse infante, que assim vinha ao mundo sob o signo de um patrono…»

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«(…) É certo que São Martinho não era um santo com a envergadura de Santiago, o Mata-Mouros, que há muito arrebatara o lugar de protector da Reconquista; contudo, se levarmos em conta a rivalidade existente entre Braga e Compostela, e o papel que desempenharam São Martinho de Braga (o outro São Martinho) e Santiago de Compostela, respectivamente santos patronos e quase fundadores de qualquer uma das duas metrópoles, essa até talvez fosse considerada uma vantagem. São Martinho de Braga/Dume fora, para além de arcebispo de Braga, um evangelizador, o homem que convertera os Suevos ao catolicismo, em data anterior à própria invenção das relíquias de Santiago e sob cuja invocação também se erigiam muitos templos, pelo que também não era desajustado à comemoração do nome que se deu ao novo filho varão de Afonso Henriques. O próprio Martinho Tours, em cujo dia o infante nasceu, tinha uma história de vida e tradição muito adequada a servir o nome de um jovem infante como Sancho. São Martinho começara a sua vida como um brilhante soldado nos exércitos romanos, abandonando a carreira militar por se ter convertido ao cristianismo, depois do famoso episódio em que rasgara a sua capa para abrigar um mendigo que, mais tarde, em sonhos, veio a reconhecer ser o próprio Cristo. O seu carácter belicoso, a sua actividade militar e o seu labor como mentor de conversões ao cristianismo e evangelizador dos pagãos faziam dele um santo mais que meritório e condigno para o segundo filho varão do primeiro e conquistador rei de Portugal, que, também ele baseava as suas ambições e a sua virtude no desempenho da luta contra o infiel, numa terra onde os pagãos ainda abundavam.
O dia de São Martinho deve ter sido considerado, por tudo isto, um dia auspicioso para o nascimento desse infante, que assim vinha ao mundo sob o signo de um patrono que ao longo da sua vida soubera lutar agressivamente pela expansão da fé cristã e pela conversão dos pagãos, mas que também soubera ser caritativo e generoso para com os pobres e necessitados, numa pastoral muito típica de um santo com as características de missionário-guerreiro como Martinho de Tours. E para um homem com a linhagem de Afonso Henriques, cujo pai, Henrique da Borgonha, era originário precisamente da região adjacente ao arcebispado de Tours, onde o túmulo do santo continuava a atrair: algumas das mais importantes peregrinações da França medieval, ver um filho nascer no dia de um dos santos patronos da França devia parecer um sinal muito positivo.
Ora o destino não quis que o irmão mais velho sobrevivesse, transtornando assim toda a ordem prevista dos acontecimentos: pela entrada em cena do imponderável. Henrique morreu pouco depois do nascimento de Sancho, provavelmente ainda durante o primeiro ano de vida deste último, engrossando, afinal, os números já de si muito elevados da mortalidade infantil na Idade Média, e deixando um vazio na primogenitura masculina da linhagem régia. Martinho era agora o próximo nessa linha de sucessão. Deve ter sido face à probabilidade muito real de Sancho I poder vir a suceder ao pai no trono que foi decidido começar por mudar-lhe o nome de Martinho para Sancho.
Por muilo nobre que o nome Martinho fosse, era um nome que não devia ter quaisquer ressonâncias emocionais como nome de rei. Na Península Ibérica, nunca fora utilizado como tal, nem o seria no futuro, pelo menos durante os séculos XII e XIII. E talvez tenha sido essa a razão por que se decidiu mudar-lhe o nome tão cedo. É que, do Martinho que nasceu neste dia, nunca mais se ouvirá falar. Transformado desde logo em Sancho, nunca mais seria conhecido por aquele que, afinal, tinha sido o seu nome de baptismo. De facto, não fora uma lacónica notícia que os anais mais antigos que temos sobre este facto nos dão, não o saberíamos de todo. Mas os analistas que trabalhavam no seio do scriptorium do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra entenderam ser de registar esse facto:

Sancho I nasceu na noite da festa de São Martinho, foi baptizado como Martinho, mas depois foi chamado Sancho (cognomento Sanctius)».

In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.

Cortesia de Bertrand/JDACT